Do Paraíso à Terra Prometida, com escala em Budapeste. Um voo atribulado, na companhia dos ladrões de goiabas, com os nomes mais criativos que só o calor de uma terra quente e rica em sabores pode cozinhar.
“Budapeste é casas grandes, grandes, com parabólicas nos telhados e pátios com cascalho e relvados bem aparados e vedações altas e muros (…) onde vivem pessoas que não são como nós. Mas também não se vê nada que mostre que há pessoas reais a viverem aqui; até o próprio ar está vazio (…). Não há cheiros, não há sons. Só nada. (…) E eu estou sempre à espera que as ruas limpas nos cuspam e nos digam para voltarmos para donde viemos.”
O ar é vazio, mas há goiabas para roubar. Bastardo, Stina, Sbho, Chipo, SabeDeus e Querida sabem o caminho de olhos fechados para chegar a Budapeste, trepar às arvores, camuflar-se nas sombras e comer goiabas até ficarem prenhes de obstipação. O rabo vai doer-lhes e não haverá agachamento que lhes valha ou acuda na tarefa de evacuação, mas pelo menos a fome, esse cavado especial que define as suas barrigas, será menor, estará mais silenciado. A fome, esse inimigo maior, essa violência sempre presente.
“A Chipo aponta para a coisa e farta-se de espetar o dedo no ar de uma maneira que quer dizer O que é isso? Esfrega a barriga com a outra mão; agora que a Chipo está grávida, anda sempre a mexer na barriga como se fosse algum brinquedo. (…) Olhamos todos para a boca da mulher e esperamos para ouvir o que ela vai dizer. (…) Olho com atenção para a mão comprida dela e para a coisa que ela está a comer. É espalmada e a parte de fora tem uma crosta. A parte de cima é cremosa e parece fofa e macia, e há umas coisas tipo moedas na superfície, de um cor-de-rosa escuro, da cor de queimaduras. Também vejo um polvilhado de vermelho, verde e amarelo e por fim os altos castanhos que parecem verrugas.”
“A Neve e as Goiabas” (Teorema, 2014), de NoViolet Bulawayo, é isto mesmo: um espetar de dedo que aponta às diversas formas de violência que rodeiam e definem a vida destas seis crianças e das famílias, da comunidade, da aldeia, de um país. A violência que não conhece vocábulos para descrever comida que não nunca comeram. A fome, sempre a fome. A fome que se tempera, com metáforas e episódios que denunciam outras formas de violência: o abuso e a violação, expressos em barrigas que crescem e deixam mudas as crianças que não percebem o que está a acontecer (e aconteceu) aos seus corpos. A violência que não explica, mas condena os adultos que parecem ossos depois de se ter roído a carne, e que faz esconder a SIDA, “que é como esconder uma coisa com cornos dentro de um saco. Um dia os cornos começam a furar o saco e saem fora para toda a gente ver, diz o Stina”. A violência de não compreender, mas assistindo aos corpos brutalizados, mutilados, esfarrapados, enforcados, reduzidos ao nada. Assistir, num silêncio grande e negro, um silêncio que corrói.
“Mas nós vemos, nos olhos dos adultos, a raiva. Está em silêncio, mas está lá. Seja como for, o que é a raiva quando é contida como um coração, como sangue, quando não se faz nada com ela, quando não se usa para atacar ou sequer para gritar? Uma raiva assim não é nada, não conta. É só um grande cão terrível sem dentes.”
Talvez seja isso que se sintam, cães terríveis sem dentes, que caíram por não ter o que morder. O que comer. E, então, acenam-lhes com a partida, a terra prometida. Outra violência. A da promessa, lá longe. A promessa que se prova em migalhas trazidas pelas ONG’s, esses “camiões bravos a levantar poeira, um monstro furioso cujo os olhos estão escondidos”.
A América, esse grande babuíno do mundo, tão longe que é preciso ir de avião, uma distância que assusta, uma distância violenta pela violência que é não poder voltar, “mas a gente tem de poder voltar do sítio para onde tiver ido, seja ele qual for”. Um sítio frio, onde os prédios arrotam na cara de Deus e todos os comprimentos e cumprimentos isolam, comprimem e anulam ilusões, expectativas e esperanças que faziam da América o paraíso. Um paraíso cheio de estradas infinitas, como as piadas do Diabo, ditas num inglês que é como uma enorme porta de ferro da qual andamos sempre a perder as chaves; um paraíso cheio de pessoas obesas, mas famintas de afectos que lançam «nãos» como quem larga tijolos do tamanho de aviões.
O tema não é novo, mas a forma como Bulawayo dá voz a todos estes nãos, faz de “A Neve e as Goiabas” um livro que merece ser degustado, embora a violência seja o tempero principal.
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