“Conversaram acerca do planeta a arder, acerca da fome, guerra e morte, acerca de adultos horrorosos que haviam falhado e continuavam a falhar. Falaram de como devia ter sido diferente quando os seus pais eram novos. Cerraram os punhos e falaram acerca dos protestos em que tinham tomado parte e dos protestos que ainda viriam. Durante um segundo, roçaram o limiar do desespero. Mas o sol estava belo a banhar o encantador prado, e a canção das cotovias era maravilhosa, e os seus corpos encostados um ao outro eram familiares e reconfortantes, e belos também, e tinham ali perto amigos, e famílias, e as suas mentes cavalgavam, os seus corações batiam e as suas almas elevavam-se tão alto quanto as cotovias que continuavam a cantar por cima delas. E eram jovens e, apesar de todas as dúvidas e de todos os horrores, ardiam de amizade mútua, ardiam de desejo de ajudar a criar um mundo melhor.”
Geração após geração, o mundo tem ficado um lugar bem mais tramado para se viver. Ainda assim, no meio de tanto cataclismo, inevitabilidade e profecia, há quem vá mantendo a esperança de que, um dia, as coisas possam mudar, deitando às urtigas a ideia do consumo e da acumulação como o Santo Graal da humanidade e escolhendo, em vez disso, a natureza como o elemento fundamental, que precisa de ser respeitada e cuidada. É o caso de Sylvia e Gabriel, os jovens protagonistas de “A Música dos Ossos” (Editorial Presença, 2021), uma ode à Natureza assinada pelo britânico David Almond, de quem a Editorial Presença havia já publicado “O Rapaz que Nadava com as Piranhas” e “Uma Criatura Feita de Mar”.
Sylvia Carr é “uma rapariga do século XXI, uma rapariga perturbada por guerras, por políticos vergonhosos, pelo aquecimento global” que se sente, inexplicavelmente, uma pessoa antiga. De Newcastle muda-se para a agreste Northumberland, onde deixa para trás a sua melhor amiga para encontrar uma paisagem imensa, silenciosa e vazia, mas também Gabriel, um misterioso rapaz que, estranhamente, lhe parece muito familiar.
A partir de um osso de um animal, Gabriel construiu um instrumento musical que, em tempos ancestrais, era usado para encantar os vivos e invocar os mortos. Para Gabriel, os rituais de passagem deixaram de existir, consistindo, nos dias de hoje, em exames e diplomas. Para este jovem, militante em surdina, a solução para o mundo passa por uma mudança na essência: “Não adianta recuperar o mundo selvagem se não recuperarmos o selvagem em nós”. É com ela que Sylvia empreeenderá uma viagem interior, num reencontro com o mundo pré-histórico que a conduzirá à auto-descoberta.
David Almond escreveu, em “A Música dos Ossos”, um romance de intervenção para as novas gerações. Um livro belo, lírico e hipnótico, que pinta o mundo em tons de negro, mas oferece uma caixa de lápis de várias cores para podermos começar de novo. Outra vez.
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