“— Porque é que a maravilha é imperfeita? — Ele fita-a, à espera.
Ela pergunta a si mesma se deverá procurar uma resposta rigorosa ou sair-se com uma piada; por fim fala sem refletir.
— Porque não dura.”
Um gelado na capa do livro dá o mote para “A Maravilha Imperfeita” (D. Quixote, 2017), um romance do italiano Andrea de Carlo que, a partir do “equilíbrio instável” desta delícia, traça um paralelismo com a vida.
Milena Migliari é uma italiana “transplantada para solo francês”, dona de uma gelataria em Provença, que “cria, pensa e experimenta gelados com uma tensão de artista”. Nick Cruickshank é uma estrela de rock inglesa, vocalista e carismático líder de um famoso grupo que se prepara para dar um concerto na vila, com fins humanitários. A vida dos dois está destinada a cruzar-se, numa narrativa que se desenvolve ao longo de apenas três dias, de quarta a sexta-feira, alternando as duas personagens ao longo de trinta e cinco capítulos.
Retratando um turbilhão de emoções, de forma leve e simples, balanceando entre o drama e a comédia, o autor toca em temas como uma relação lésbica e a maternidade, jogos de poder, egos e conflitos de personalidades, com muito sucesso e dinheiro à mistura.
Milena vive há alguns anos uma relação com Viviane, uma mulher estável e forte, e prepara-se para se submeter à fecundação assistida. Mas será esse o seu desejo, quando nunca sentiu “vocação de parideira, ama-de-leite e educadora”? A italiana questiona-se como foi possível a sua relação, ao princípio “mil vezes mais livre do que os seus anteriores relacionamentos com homens, não só tenha acabado por recriar papéis, como tão convencionais?”. Quanto a Nick, serão o dinheiro e a fama portadores de felicidade ou, por outro lado, aprisionadores da liberdade criativa que tanto ambiciona e de uma relação que o verdadeiramente satisfaça?
No final, a mensagem do autor é clara: “A vida é demasiado curta para a desperdiçarmos a concretizar sonhos dos outros”. Para chegar a este ideal, Andrea de Carlo viaja pelo mundo doce e encantado dos gelados de Milena e, em paralelo, pelo universo louco e irreverente de Nick. Uma leitura leve e despreocupada, que entretém sem exigir muita atenção, mas que se revela excessivamente previsível e com um final repentino que deixa praticamente tudo em aberto.
A forma como Milena vive a arte de produzir gelados, captando “com miraculosa sensibilidade e perspicácia a quintessência de ingredientes”, como avalia a crítica, é sem dúvida o ponto que encantará os leitores – especialmente os mais gulosos. O facto de não sentir satisfação em repetir receitas, mas encontrar a verdadeira alegria na experimentação e no risco, faz pensar de que forma isso se aplica à vida. Para Milena, a magia dos gelados está “na variabilidade consoante a estação, o local, a temperatura exterior e o humor de quem os prova. (…) Não lhe interessa nada fazer bons gelados para turistas; o que lhe interessa é explorar os misteriosos matizes dos sabores, descobrir as ligações entre sensações, imagens e recordações, atravessar a complexidade para chegar ao máximo da simplicidade”.
O outono é o cenário para esta Maravilha Imperfeita, num apelo aos sentidos que envolve o leitor nos aromas e sabores típicos da época, como a castanha, o dióspiro e a romã, entre muitos outros, na busca pela “doçura ideal”.
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