“Várias são as mortes que precedem o fim”. Esta é a conclusão que a autora Betty Milan retira dos últimos tempos de vida da própria mãe. “A Mãe Eterna” (Objectiva, 2017) é um desabafo amargo sobre a dificuldade de assistir aos noventa e oito anos de alguém que, em tempos, também nos criou.
Uma das formas mais curiosas de cuidar é limitar a liberdade. Contudo, até que ponto é legítimo interferir no livre arbítrio da velhice? Para a escritora não é uma questão, mas sim um dever limitar a autonomia da mãe. Várias vezes o deixa explícito: “Não posso deixar que faças o que bem entendes. Estás a tornar-te um perigo. (…) Não és uma criança, mas devo tratar-te como se fosses”. No fundo, há uma inversão de papéis. A filha sente-se mãe da mãe e, provavelmente por isso, tende a controlar e a antecipar os cenários mais dramáticos – “Como será no dia em que não nos souberes reconhecer?”. Assistimos a uma maternidade forçada e solteira. O pai da escritora, o grande amor da mãe, só está vivo nas cartas que deixou à sua mulher, enquanto o irmão – personagem ficcional – é uma presença inconstante que não partilha o mesmo entendimento da irmã. É, por isso, um percurso muito solitário que pode justificar a frustração e o desabafo em livro.
A autora escreve à mãe na primeira pessoa, sem espaço para o politicamente correcto ou para julgamentos subconscientes. São regulares expressões fortes e implacáveis que podem inquietar o leitor, pois é na escrita que culminam os sentimentos de irritação, injustiça e tristeza da escritora. Na verdade, torna-se possível que nos questionemos até que ponto o desabafo se torna insultuoso, como é o caso da passagem “apesar de viva, estás cadaverizada, um robô cujo motor é o hábito”. Mas, provavelmente, o amor materno tem estranhas formas de se revelar.
Betty Milan, provavelmente devido à sua herança jornalística, transmite a realidade tal como é vivida pela própria, ao utilizar uma descrição real e inequívoca da verdade que antecede o fim. No entanto, também promove uma reflexão sobre o modo como escolhemos encarar o fim de vida dos que nos rodeiam. No caso da escritora, observamos como esta é uma escolha repleta de dualidades e antagonismos. “Quero o teu fim, mas não o desejo”.
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