“Dou por mim a treinar-me para a morte, com delicadeza e consideração, borrifo-me por não ser o que planeei ou como os outros desejavam que fosse. E dou como certo que algumas vezes amei mais do que fui amada, que existe sempre quem seja mais inteligente ou talentoso, e que com isso tudo se pode construir um amor próprio que baste.”
Assim pensa Vera, uma fotógrafa conceituada, após mais de 50 anos de uma vida que conheceu amizades, amores e revoluções, marcada pelo desaparecimento, numa noite de finais da década de 1990, daquela que era a sua amiga inseparável desde o tempo em que ambas frequentavam o Colégio do Sagrado Coração de Maria, em Lisboa.
Vera é narradora e protagonista de “A Irmandade Invisível” (Oficina do Livro, 2024), de Joana Leitão de Barros, que nos oferece a perspectiva cativante de alguém que tinha 12 anos em 1975 e testemunhou os dias intensos do PREC, quando a agitação política e social – por vezes violenta – gerava o medo de uma guerra civil. Isto numa escola onde se reuniam tribos bem distintas: descendentes de famílias poderosas, “herdeiras de velhas fortunas e impérios”, embora algumas tenham caído em desgraça devido à associação dos seus apelidos com o Estado Novo; bolseiras com parcos recursos económicos; filhas de intelectuais de esquerda e de capitães de Abril; e o grupo cada vez mais relevante das filhas da média burguesia, com dinheiro para pagar as mensalidades, mas rejeitadas por instituições mais elitistas. A escola em causa é peculiar, pois administra-a o Instituto do Sagrado Coração de Maria, que agrega numerosas religiosas com convicções políticas de esquerda, conduzidas pela fé ao empenho em mudanças sociais, ao ponto de algumas defenderem a luta armada. Hoje estão dispersas por mais de uma dezena de países e associadas à ONU, combatendo o tráfico humano e promovendo os direitos das mulheres através de uma organização não governamental chamada Religiosas do Sagrado Coração de Maria. Naquela altura, eram consideradas inimigas do povo, ou perigosas radicais comunistas, consoante o ponto de vista.
Neste contexto, forma-se uma irmandade que se prolonga pelo tempo e pelo espaço. Entre divisões, afinidades duradouras e outras dissolvidas, destaca-se o par composto por Vera e Belém. Ambas têm famílias complicadas e, já na idade adulta, a primeira assiste aos esforços da segunda no sentido de servir de ponte sobre as desavenças entre a irmã mais velha e o irmão mais novo. Mas as tentativas de pacificação geram ressentimento e, um ano depois de o irmão ter ficado ferido num atentado com explosivos – do qual a irmã mais velha é acusada – Belém desaparece.
O mistério será desvendado entre fragmentos de tempos cruzados, paralelamente ao percurso não linear de uma protagonista que transita fluidamente de uma condição para outra e teima em “abocanhar a vida”, apesar de todas as vicissitudes, encarando o futuro com esperança: “Lá vamos nós, alguma coisa de novo nascerá dessa outra condição”.
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