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“A Ilha de Martim Vaz” | Jonuel Gonçalves

Por Natacha Cunha · Em 24/03/2017

“A loucura começou ao inventarem que somos várias espécies e umas devem mandar nas outras, perdeu-se a noção do símbolo principal de Adão e Eva: todos temos a mesma origem.”

Três continentes, três épocas, várias vozes, um tema que as une: as restrições da liberdade, entre as quais a escravatura. O assunto é duro e revoltante, quanto mais quando lemos o relato de quem o viveu de perto, de quem o sentiu na pele, mas em “A Ilha de Martim Vaz” (Guerra & Paz, 2017) também moram aqueles que quiseram “conhecer gentes de outras terras sem lhes roubar a vida nem a liberdade”.

Como o autor refere à partida na sinopse, este não é um livro de viagens, apesar de atravessar três continentes – “de Ceuta a Tomboctu, de Benguela ao Rio, pela Amazónia, por Bordéus, por Lisboa, por Luanda, pelo Sahel, ares, mares, dunas, florestas e savanas” –, mas o leitor é aqui viajante através de um conjunto de manuscritos do século XV e XVII, achados no Rio de Janeiro durante as obras para os Jogos Olímpicos de 2016, que o livro reúne. Estas “histórias muito fora da versão habitual” cruzam-se com a vida do casal de pesquisadores que trabalhou os documentos, “cujo percurso está tatuado pelas grandes turbulências do século XX e deste pedaço do XXI”.

Jonuel Gonçalves quis manter o estilo dos textos, deixar “palavras soltas em ortografias antigas como lembrete ao leitor sobre as respetivas épocas”, o que potencia a viagem, já de si em expoente pela escrita visual e íntima do autor, para a qual com certeza contribui a experiência que o próprio viveu na luta pela independência e democratização de Angola.

O facto de a narrativa ser fragmentada nem sempre facilita a leitura, mas uma vez entrados no espírito de viagem – em tempo e lugar –, na pluralidade de vozes a quem na nossa mente atribuímos um rosto que começamos a ter como familiar, percebemos a riqueza da obra e mergulhamos num assunto que deve dizer muito a todos nós.

“Arrepio é a palavra certa? Arrepio é só a sensação na barriga na espinha e na pele mas estas coisas das nossas vidas fazem tremer corpo e alma devastados pelo cérebro paralisado e o coração disparado quando sente a vida vendida caída nas mãos de carrascos”.

Às desigualdades raciais somam-se as desigualdades de género, através de mulheres que vêem os seus sonhos suspensos por aqueles que têm como lei suprema “os fracos se curvarem com respeito na frente dos fortes”.

Mas no meio do caos brota a esperança, a ousadia de pensar como fazer parar a servidão, não apenas fugindo das fazendas (“o centro de todos os males”) mas fazendo-as parar, tal como as folhas com ideias francesas espalhavam, “guardando segredos de ajuda aos escravos e entregando boas novas entre lá e cá sobre o mundo”.

Guerra & Paz,A Ilha de Martim Vaz, Deus Me Livro, Jonuel GonçalvesO amor – de mãos dadas com o erotismo – é aqui ponto de união, numa clara forma de resistência à opressão, de que é exemplo o amor entre um homem e mulher de cores diferentes. As religiões e os seus ódios estão também aqui espelhadas, fazendo ver, através de um casal com uma mentalidade muito avançada para a época, que não são as normas religiosas que devem orientar a vida, antes o amor e a sua descoberta.

“Se o pensamento humano mudar como diz meu pai em breve a inteligência será mais forte e poderemos andar ou navegar livremente entre terras desta margem do Mediterrâneo e deste mundo”.

“A Ilha de Martim Vaz” é um livro que faz pensar e reflectir, entre viagens, rotas, tesouros e manuscritos que levam o leitor ao combate e à resistência. No final, as histórias alinham-se para mostrar que as grandes paixões sempre prevalecem: sobre a escravatura, o racismo, as perseguições religiosas e muitas outras injustiças que, ainda hoje, tardam em ser abolidas.

Se, nesta história, conhecemos personagens que copiam e recopiam manuscritos e cartas apaixonadas com o objectivo de passar a mensagem de que há quem defenda os perseguidos e oprimidos, também este livro serve para lembrar que as injustiças que ainda imperam no mundo devem ser combatidas.

“Noémia sentiu-se livre quando na capital do reyno alguém lhe chamou de senhora e disse que ela devia vingar-se da escravatura”.

A Ilha de Martim VazGuerra & PazJonuel Gonçalves

Natacha Cunha

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1 Commentário

  • Jonuel Gonçalves comentou: 24/03/2017 at 13:58

    Muito obrigado pela leitura e análise.

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