Milán Füst (Budapeste 1888-1967), um verdadeiro professor de escola, conhecido sobretudo como poeta, foi traduzido em mais de meia dúzia de línguas europeias. Em 1967, aos 79 anos, esteve nomeado para o Prémio Nobel de Literatura.
“A História da Minha Mulher” (Cavalo de Ferro, 2017) – com o sub-título Apontamentos do Comandante Storr -, obra até agora inédita em Portugal, foi originariamente publicada em 1957, após sete longos anos de escrita, sendo a obra mais representativa de Milán Füst e uma das mais importantes da literatura húngara do século XX. Romance repleto de ironia e humor tem, simultaneamente, uma visão muito melancólica da vida, descrevendo o desconcerto do protagonista perante um mundo em constante mudança.
O livro mapeia não só a mente mas, também, as emoções do muito encorpado (“gigante”) Jacob Storr, capitão de navios de longo curso holandês, concentrado numa questão recorrente que, para si, é absolutamente crucial: a sua muito jovem esposa francesa, Lizzie, é-lhe infiel ou não? Para cada cenário de sugestão de infidelidade que apresenta, existem em paralelo pontos de vista e situações passíveis de refutarem tais hipóteses.
Jacob Storr é, assim, um homem apanhado no aperto paralisante de uma obsessão implacável. “Que a minha mulher me engana já eu suspeitava há muito“, declara na linha de abertura do livro. Essa ideia fixa é o tiro de partida para um longo monólogo interior acerca do adultério e da dissoluta moral de muitos europeus no período entre as duas Grandes Guerras, moral essa que, sem assumidas provas, também imputa à sua mulher apenas e tão só porque esta vive nessa época.
Na horrível beleza de uma mente ciumenta, fundada (ou não) na verdade, vê-se assombrado nas suas elucubrações, especialmente em Paris e Londres, onde o casal vive, tornando-se uma situação dramática e auto-destrutiva para Storr e Lizzy. No entanto, aquele não se furta a flirtar outras mulheres, continuando a fixar à sua mulher o labéu de “galdéria”, de “mulher depravada“, “traiçoeira” e “de moral solta”. Os leitores atentos têm boas razões para acreditar que ele é a vítima indefesa de uma auto-ilusão. Tão hipnotizado está Jacob Storr que, mesmo após a morte de Lizzy em Barcelona (muito tempo depois do divórcio), ele imagina vê-la fugazmente na rua.
O estilo do autor, com uma escrita de extremos e contrastes, avanços e recuos na trama, avisos narrativos e descrições impressionistas que reflectem o ambiente decadentista de certos círculos boémios, consiste na acumulação de pormenores e na repetição de momentos, susceptível de aparentar uma redacção caótica para a elaboração destes “apontamentos “. No entanto, tal aparência é absolutamente desmentida pelo rigor linguístico presente na obra.
“A História da Minha Mulher“ é um livro carregado e negro, desassossegado e, por vezes, sufocante na permanente suspeita com que faz surgir o denso nevoeiro de ciúme, analisando em profundidade uma personagem altamente insegura. Além disso, ilustra de forma notável a vulnerabilidade do carácter humano capaz de provocar obsessões que se transformam, elas próprias, no propósito de uma vida. “Mas firmemente acredito (…) que, num belo dia de sol, ela vai reaparecer algures, numa rua deserta, numa esquina, e que, não sendo já nova, há -de correr nos seus passos miúdos e queridos, no seu passo familiar. (…) Caso contrário , de que me serve viver? Eu já espero isso, e esperarei, enquanto for vivo. Prometo. A quem? Não sei.”
De incontornável leitura, este romance de Milán Füst é um texto essencial da literatura do ciúme, criando um mundo de verdadeiro sentimento no lugar do mundo real e encerrando, de forma teatral, com um nada subtil e inquietante “É o Fim”.
1 Commentário
Boa tarde
Vi hoje o filme “A história da minha mulher”no Nimas. Fiquei encantada e quis saber mais. Pesquisei e vim ter a esta página. Muito obrigada Sra. D. Helena Coimbra pelos seus esclarecimentos. Infelizmente não consigo ter concentração para ler e o cinema é o meu refúgio. Creio que o livro está muito bem adaptado, na minha modesta opinião. Eles são lindos, os ambientes são lindos, a música é maravilhosa, depois há o malvado do ciúme que envenena tantas vidas.