“Diz-me, minha querida, porque não és como toda a gente? Eu não sou como toda a gente, mamã. Eu sou a Júlia!”
“A história da Júlia e da sua sombra de menino” (Orfeu Negro, 2021) não é apenas sua, poderia ser a história de um qualquer menino ou menina. Júlia não tem maneiras, não é fácil. Gostava de ser ruiva, não gosta de tomar banho, ainda chucha no dedo e, na hora de sair, aparece por pentear. Fará de propósito? Os seus pais apreciariam outras maneiras de ser e estar, uma filha mais feminina e bem-comportada. No entanto, a Júlia não é como como os pais sonharam, bem pelo contrário: é uma verdadeira maria-rapaz, queixam-se os pais. Já Júlia, na hora de sair de casa, preferia um abraço aos comentários dos pais.
Certa manhã, Júlia descobre que tem sombra estanha, confusa e enganadora, “uma sombra de menino!“. Num diálogo com uma sombra que não responde, Júlia procura respostas às suas perguntas. Para ser amada terá de comportar-se como todas as outras meninas? Mas será ela uma menina? Um menino? Ou será uma maria-rapaz? Terá o direito de ser diferente? Poderá fazer as coisas de forma distinta? A dúvida instala-se, o desânimo permanece, a incerteza persiste. “Queria meter-se na toca de um rato“, livrar-se da sombra, uma tarefa difícil. A gentil Júlia, assustada, questiona-se: afinal, quem sou?
As ilustrações a preto e branco contrastam com pequenos apontamentos vermelhos, aludindo à energia e à excitação, ao espírito revolucionário e a um certo perigo imanente que, curiosamente, desaparece na ilustração de Júlia-bulha, Júlia-fúria, Júlia-Júlia.
Um álbum original de 1976, provocante, revolucionário e actual, que nos convida a ver pessoas e não estereótipos. Um grito de alerta para romper com o pensamento padronizado, pré-concebido. Um livro perguntador, reflexivo, excelente para induzir o diálogo sobre os estereótipos e a identidade.
Christian Bruel, escritor, e Anne Bozellec, ilustradora, criaram a editora Le Sourire qui mord e foram autores deste álbum. Ao longo de 20 anos, a editora publicou 79 livros que desafiaram a literatura infanto-juvenil a falar de temas contemporâneos, a desconstruir estereótipos e a ver as crianças como pessoas por inteiro, com imaginação, sofrimento, perda, empatia e amor. Com um sorriso que (também) morde.
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