Quando a Presença decidiu lançar-se na colecção Babel, projecto editorial que infelizmente não chegou a bom porto – terá ficado pela edição de 17 dos 33 volumes originais -, houve algo que, independentemente da qualidade da narrativa de cada um dos volumes, terá feito valer a pena a compra de cada livro: os curtos prefácios assinados pelo argentino Jorge Luis Borges, pérolas da arte de dizer muito com muito pouco, conseguindo em escassos parágrafos resumir um conto, apresentar um autor ou contar um facto relevante – ou apenas curioso – da história da literatura. Foi precisamente Borges quem, com a classe, a modéstia e a precisão habituais, ficou encarregue, por volta de 1970, de prefaciar o livro “Fait divers de la Terre et du Ciel”, da compatriota e amiga de longa data Silvina Ocampo.
Revelando estar cercado por alguma timidez, Borges diz que o seu universo, puramente verbal, se torna opaco perante o de Silvina, feito de “exaltações geradas pela música e pela cor, paraísos perdidos”, no qual “intervêm todos os sentidos e a sua delicada diversidade“. Após mostrar que os amores literários de ambos dificilmente encaixam, Borges fala de algo que estará, provavelmente, no coração de muitos dos seus contos: “o seu estranho amor por uma certa crueldade inocente ou oblíqua”, que atribui, na falta de outra explicação, ao “interesse atónito que o mal inspira numa alma nobre”. Uma crueldade que, para Borges, remonta também “aos Antigos ou aos povos do Oriente”, e que faz com que Silvina Ocampo nos veja “como se fôssemos feitos de vidro”, num retrato da humanidade feito de muito poesia mas mantendo o distanciamento e a elegância.
Em “A Fúria” (Antígona, 2021), livro que conheceu a sua primeira edição em 1959, estão reunidos trinta e quatro breves histórias que ilustram este inquietante universo Ocampiano, e que em comum terão, para além dessa crueldade primitiva, a sombra da infância, a perda da inocência, alguma perversão, loucura a rodos e fantasmas que parecem estar escondidos dentro de corpos verdadeiros.
Aprende-se, numa estranha corrida entre animais falantes, a habilidade de fintar a morte (A lebre dourada); com o suicídio de Leonardo Moran em fundo, disseca-se a discórdia conjugal e sentimental num bilhete de despedida (A continuação); num estranho elogio ao corpo, aprendemos que “a doença é uma lição de anatomia” (O mal); entramos numa casa que, tal como a que foi celebrizada pelos Grimm, esconde um acto de embruxamento, numa variação e alternância do papel de vítima (A casa de açúcar); passamos a pensar duas vezes quando alguém se ofereça para nos passar o fato a ferro (A casa dos relógios); redimimo-nos através da maldade, com um amor que não é mais do que um fantasma (A fúria); abrimos uma caixa de onde saem “os gritos dos traidores que tinham morrido enquanto os torturavam” (O carrasco); tiramos a radiografia à infidelidade e à prisão dos relacionamentos (O castigo); ou, por fim, gravamos na pedra a história da raça humana, feita de enevoamentos, inquietações e proporções desmedidas (Ameaça inextinguível). 34 contos cirúrgicos de alguém que encontrou, na literatura, uma forma de prolongar uma misteriosa rebeldia.
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