Não temos como negá-lo. Estamos perante um assunto desconfortável, duro, sem qualquer sentimento paliativo, pois entramos no domínio de um dos mais graves flagelos que afectam o Homem em pleno século XXI: a fome.
Vangloriamos os infinitos avanços tecnológicos, que acabam por ser ditadores da nossa existência, fazemos loas à modernidade, mas não conseguimos terminar com os três milhões de crianças que morrem todos anos devido a doenças ou falta de alimentos.
Além disso, toda esta catastrófica realidade pode levar mesmo a extremos de natureza absurda pois, diz a economia global, que o problema da fome não se deve à carência de alimentos mas sim à sua má distribuição, à sua inviabilidade oriunda de uma amálgama de fatores como questões religiosas, tradicionais, da gestão dos recursos, corrupção, exploração e egoísmo capitalista, alterações climáticas, resquícios dos impérios coloniais, ou mesmo, desinteresse de quem tem muito em ajudar quem menos tem, prova máxima do egoísmo ainda latente nesta distorção a que chamamos Humanidade.
É exactamente esse jogo de “interesses” transnacional que o jornalista e escritor argentino Martín Caparrós explora em “A Fome” (Temas e Debates, 2016), um extraordinário exercício reflexivo que nos faz rever as inter-relações socio-económicas mundiais sobre uma perspectiva variada.
Em primeiro lugar temos a observação do profissional, do jornalista, que analisa e sintetiza a problemática em debate, passando ao leitor a ideia das suas origens e implicações, dando também possíveis “razões” e “saídas” para o problema evitando a superficialidade em detrimento da raiz do problema.
Uma segunda perspectiva é revelada no seu sentido antropológico. Caparrós faz-nos “ouvir”, por via das muitas entrevistas que realizou, a voz da fome, contextualizando os seus horrores e elevando ao extremo o seu estado nocivo, marginal, tendo os seus protagonistas, os pobres – os que morrem à e da falta de víveres -, direito a, pelo menos, exigirem uma resposta.
Desses diálogos resulta a oportunidade de dar voz aos que não têm voz, do que é sentir fome e ter uma janela de esperança de vida reduzida, dos que comem para (sobre)viver e não daqueles que vivem para comer. A esses, a morte até soa natural, sem aspas, sabendo que os seus filhos, subnutridos ou doentes, não deixaram de ser vozes anónimas de um sofrimento surdo que é exposto nas televisões, arrepiando quem os vê – mas que são, para a maioria desses, apenas notícias, consequências do mundo.
À boleia dessas conversas viajamos pela Índia, Bangladesh, Nigéria, Sudão do Sul, Estados Unidos da América, Argentina. Que importa que alguns destes países sejam os maiores exportadores de carne? Ou os maiores produtores de soja? Nada. Pois a fome não é exclusiva dos países mais pobres: é uma epidemia global que convive paredes meias com a opulência e, a custo, disfarçada por algumas estatísticas sobre a pobreza crónica.
Sarcástico, afirma Caparrós: “Existe fome, porque há milhões em situação de pobreza extrema. A primeira questão deriva de uma série de fatores, a segunda dos seus efeitos”. São, no fundo, as origens da fome, que mais preocupa quem a estuda, com as equações matemáticas e económicas no topo da pirâmide de desconfiança.
Existe ainda uma outra perspectiva explorada por Martin Caparrós, centrada nas deambulações entre si mesmo e uma entidade imaginada, que não controla – o leitor -, e que traz a palco factos que estão na básica adaptação do Homem ao mundo e à sua capacidade de sobrevivência ao meio. Disto resultam algumas perguntas: Como podemos viver se sabemos como está o mundo e nada fazemos para o melhorar? Podemos, enquanto indivíduos, lutar contra essa assassina inércia? Quando abrir os olhos e encarar a realidade de frente?
Obra de excelência, “A Fome” dá-nos (mais uma) oportunidade para encarar este problema e tentar compreender o seu alcance, através de números, reais, que por vezes são adocicados por eufemismos mas que apenas adensam o fel vivido por quem morre, diariamente, por não ter o que comer, por lhe ser negado o direito à vida.
1 Commentário
publicado na minha página do Facebook:
Ouvi há pouco uma entrevista com Martín Caparrós na rubrica Última Edição de Luís Caetano, na Antena 2 da RDP, a propósito da edição do seu livro “A Fome”.
A certa altura foi mencionado um facto que considerei bastante curioso: há aproximadamente o mesmo número de esfomeados nos países pobres do que de obesos nos países ricos. Nestes últimos os mais pobres alimentam-se com comida a que se deve chamar porcaria, criando graves problemas de saúde que vão depois fazer despesa nos serviços de saúde; nos países empobrecidos os esfomeados não dão dessas despesas mas a subnutrição cria desenvolvimentos diminuídos físicos e mentais, o que cria e virá a criar problemas graves para o futuro.
Um grave problema este, a fome, abordado num livro que me parece de grande interesse, e já raramente abordado pelos media, conforme referiu o entrevistador ao abrir a entrevista perguntando: porque é que as imagens de fome desapareceram da televisão?
http://deusmelivro.com/mil-folhas/a-fome-martin-caparros-24-5-2016/