“A verdade é que em Lisboa se come cada vez pior. E não é apenas por razões do aumento do custo de vida. É por tudo. É principalmente por culpa dos restaurantes que são empresas sem a mínima imaginação comercial”, lia-se a 3 de Maio de 1969, no Diário de Lisboa, naco de prosa desafiante e desassombrada, estreando um espaço dedicado à gastronomia e restauração, cujo título inicial, Uma Mosca no Prato, daria lugar (a 7 de Fevereiro de 1970) à designação certeira e irónica que o consagrou na Imprensa portuguesa, Uma Melga no Prato. Assinava Manuel Pedrosa, mas quem escrevia era o escritor, dramaturgo, encenador, jornalista, publicitário, ex-condutor de Fórmula 2 e futuro membro do Júri da Cornélia, Luís de Sttau Monteiro.
Os textos que servem de base ao livro “A Escrita e o Prato” (Colares Editora, 2023), de Fátima Iken, constam do período entre 1969 e 1975 e, através deles – e da sua interpretação e contextualização –, encontramos um fio que nos conduz pelos hábitos alimentares da época, mas também pela exposição de uma mentalidade em transformação, num período fulcral na nossa História recente, como foi a chamada Primavera Marcelista.
Critica-se a exiguidade de pratos intrinsecamente portugueses; um novo-riquismo que troca o sintético e o plagiado pelo sazonal e herdado (parece-vos reconhecível?); descobre-se que a origem do nome para o afamado Galetto deve-se a um frango de pequenas dimensões; elogia-se a tradição de escrever sobre o que se come (e como se come)… e abusa-se das entrelinhas para uma análise mais fina, social e económica.
Por exemplo: “«Para a mulher do nosso tempo», titula-se no anúncio e, pormenorizando o texto publicitário, pode ler-se ainda: «Hoje em dia ser uma boa dona de casa, uma mãe carinhosa, uma esposa dedicada, não é tudo. A mulher para ser amada tem que estar informada» [Modas & Bordados, 23 de Outubro de 1968]. Revela-se uma notória fase transitória, observando-se uma diferença óbvia no papel da mulher na sociedade. Apesar de tudo, a mudança ainda tem como referente o homem: “«Poder acompanhar as opiniões e o pensamento do seu marido». A mulher precisava de estar informada, mas ainda apenas para agradar o marido, como se lê nas entrelinhas…”, descodifica Fátima Iken, Mestre em História da Alimentação, Fontes, Sociedade e Cultura, jornalista especializada na área enogastronómica.
Apesar de ter menos de uma centena de páginas, trata-se de uma obra muito abrangente e bem concebida, que encerra até com listagens de restaurantes, respectivas localizações, alimentos, gráficos de consumo ou um capítulo dedicado à questão dos preços das refeições. Com este livro, a autora elabora um momento multifacetado e aliciante, cozinhado com saber, servido em várias camadas de entendimento, com um âmago muito mais requintado do que possa parecer a uma leitura mais distraída.
Por entre bordoadas constantes, curiosidades não faltam. Por exemplo, evoca-se o crescimento das cantinas nas empresas, ou explica-se a importância da disseminação do peixe congelado na década de 70: “A «Campanha da Menina Pescadinha», na RTP, foi emblema da publicidade ao peixe congelado e fez sucesso nessa década, depois de implementado o SAAP (Serviço de Abastecimento de Peixe) na capital, e por decreto/lei em 1967, com o funcionamento do novo equipamento Docapesca para congelação. Só para publicidade ao peixe congelado, o Ministério da Economia terá investido 10.000 contos, a par da criação de uma rede de viaturas de transporte Citroëncomposta por carros frigoríficos”.
O referido anúncio dura mais de quatro minutos e inclui – em 1967 – o slogan delirante “peixes de todos mares, congelai-vos”. Conforme contou o jornalista João Paulo Guerra (Diário Económico; 29-3-2003), a empresa contratante era propriedade de “Henrique Tenreiro, comandante do regime e almirante do peixe congelado”. Bom, pelos vistos, e ao contrário do copy de publicidade José Carlos Ary dos Santos, nunca ouvira o célebre slogan de Karl Marx.
Vale a pena recordar: A Menina Pescadinha.
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