“A Cozinheira de Castamar” (Porto Editora, 2020) não é um manual de nutrição. Todavia, se pensa fazer dieta ou perder peso antes de o ler, será melhor seguir um dos conselhos mais comuns deste tipo de literatura: não leia de estômago vazio, já que as descrições queirosianas dos pratos presentes ao longo das suas quase seiscentas e quinze páginas vão garantidamente abrir o apetite – mesmo dos garfos mais “selectivos”.
O enredo leva-nos até a uma Espanha ainda em convulsão, após a sangrenta guerra de sucessão que dividiu a Ibéria e a Europa, com o vencedor Filipe V de Bourbon a tentar devolver a normalidade à sua Corte, tratando de apagar qualquer vestígio do domínio Habsburgo. As aparências são tudo, nada é o que parece e mais significa mais: mais jóias, mais dinheiro, mais terras, mais títulos e, claro, mesa mais farta e de culinária mais refinada.
É precisamente à mesa de Castamar, por entre as mais refinadas iguarias e cheiros e sabores carregados de memórias, que se desenrolam intrigas políticas e se vivem amores e desamores, onde cada personagem se vê forçada a enfrentar os seus segredos e os seus preconceitos numa sociedade extremamente católica, esclavagista e intransigente, onde a diferença se paga com a vida na forca ou na fogueira. Um lugar onde, a qualquer momento, os seus destinos podem sofrer reviravoltas com que jamais haviam contado.
Fernando J.Múñez mostra-nos a espécie humana no seu melhor e no seu pior – e fá-lo com uma delicadeza primorosa, conseguindo provar que cada história oferece sempre vários lados, encaixando perfeitamente os pontos de vista de cada personagem para formar uma narrativa viciante.
“A Cozinheira de Castamar” foi um parto longo, cuja ideia embrionária remonta aos anos 90, e que começou a ganhar a forma consistente em 2008, através de um guião para uma série de época, cujos seis episódios iniciais o autor decidiu reverter para romance. Algo bem visível no ritmo que o autor impôs à narrativa, assim como o é a presença de Jane Austen – cujo universo o autor admite admirar e ter certa influência na obra – uma certa mística queirosiana – quem não se lembra do magnifico bacalhau de Eça no “Primo Basílio” – e um certo toque de Camilo – com as suas intrigas e pormenores que fazem toda a diferença, ao estilo de “Mistérios de Lisboa” -, abordando temas tão antigos e ao mesmo tempo tão actuais como o racismo, as discrepâncias sociais e a homofobia.
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