Fumando cigarro atrás de cigarro, Zeno confessa-se um homem frustrado, cuja personalidade havia sido moldada pelas catástrofes emocionais e desventuras amorosas. Mesmo sendo herdeiro da fortuna de uma abastada família triestina, retrata-se como um pobre homem que padece de acessos de raiva, esporádicas crises de identidade e colapsos esquizofrénicos — indícios mais que suficientes para levar o protagonista deste livro a consultar um especialista. Todavia, não foi a nuvem negra da doença mental que levou Zeno Cosini a pôr a mão na consciência, mas sim o desejo de pôr um fim à sua obstinada vontade de fumar.
Focando-se no propósito da cessação tabágica e seguindo os conselhos do seu psicanalista, Zeno lança-se num relato desenfreado dos eventos de uma vida carregada de remorsos e fracassos, escassas conquistas, alguns furores psicóticos e outros tantos impulsos sinistros. Isto enquanto amontoa beatas no seu cinzeiro. Ironicamente, é cedo no decurso das suas crónicas terapêuticas que Zeno descobre que, afinal, a sua “verdadeira doença era o propósito e não os cigarros”. Quem diria?
Desengane-se o leitor que imagine uma autonarrativa dramática de uma personagem esmagada por placas tectónicas de emoções. Pelo contrário — um dos encantos deste livro é a efervescência e o ânimo leve com que Zeno desvenda as psicopatologias que o afligem. Nenhum apreciador de um bom romance psicológico ficará indiferente à perícia com Italo Svevo, o autor desta obra, atinge o ponto de equilíbrio entre a reflexão existencial, a autocomiseração e uma prosa perfeitamente casual, irónica e divertida.
“A Consciência de Zeno” (Penguin Clássicos, 2023), o magnum opus de Italo Svevo, foi publicado em 1923, numa época em que a psicanálise se havia tornado no ramo científico mais popular da Europa, em especial entre aristocratas e intelectuais. Fiel aos ensinamentos de Freud, Italo Svevo decide sentar um neurótico homem de negócios no divã, gravando, com esta obra singular, o seu nome enquanto autor de relevo na história da literatura moderna.
Para além da psicanálise, da Grande Guerra e de uma crise financeira global, o primeiro quarto do século XX gerou também o modernismo. Tirando partido da mudança de paradigma nos campos da literatura e das artes em geral, Svevo dedicou-se à escola da ficção modernista, instituição na qual se graduou com nota máxima. Enquanto produto da modernidade, “A Consciência de Zeno” prima pelo monólogo interior, numa viagem catártica pelas memórias de uma vida “cheia de últimos cigarros”. Finda a sessão de psicoterapia, Zeno, o herói desta história, pode até ter falhado no seu objectivo de deixar o tabaco, mas, pelo menos, saiu do consultório de consciência tranquila.
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