Apesar do vernáculo que o título ostenta, consequente na sugestão aos mais incautos sobre a aproximação de um texto vorazmente pornográfico e lúbrico, não é disso que se trata, quando aceitamos o convite para ler um dos livros emblemáticos saídos da verve literária de um dos grandes autores franceses do séc. XX, poeta indiscutível, romancista canónico, elemento central do núcleo surrealista francês. O autor em questão é Louis Aragon (1897-1982) e o livro referido intitula-se “A Cona de Irène” (Guerra & Paz, 2023), reeditado agora pela Guerra & Paz.
Publicado originalmente em 1928, sob autoria anónima, rapidamente proibido, relançado em 1952, 1962 e 1968 — sempre vetado por uma diligente moral acéfala —, o livro chega a Portugal lançado em 1984 pela chancela &etc, mítica casa editorial de Vítor Silva Tavares, em tradução de Aníbal Fernandes. A edição actual tem uma nova tradução, assinada por Isabel Ferreira da Silva.
O livro de Aragon sublinha com veemência as preocupações estéticas e éticas que enformam o já referido surrealismo, dando primazia à forma e ao edifício literário, secundarizando as personagens e as suas circunstâncias. Atentemos numa passagem:
“Mesmo morto então vão acordar-me eles acordam-me. A mim as cascatas as trombas os ciclones o ónix o fundo dos espelhos o buraco das pupilas luto a sujidade a fotografia as baratas o crime o ébano o bétel os carneiros de África com cara de homem a gentalha do clero a mim a tinta dos chocos a graxa as pulgas os dentes com cáries os ventos do Norte a peste a mim a escumalha e a melancolia o visco espesso a paranoia o medo a mim desde as trevas sibilantes desde as cavalgadas de incêndios das cidades de carvão e as turfeiras e as exalações fedorentas dos caminhos-de-ferro nas vilas de tijolos tudo o que se assemelha à sombra em pó das noites sem luar tudo o que se rasga diante dos olhos em manchas em moscas em cinzas de carvão em miragens de morte em desespero escarros de catechu caranguejos de alcaçuz raivas resíduos mágicos moscatel focas ouro coloidal poços sem fundo. A mim a escuridão.”
É notória a voracidade com que as imagens e as palavras galgam o tempo e se aproximam da simultaneidade, estreitando a pespectiva ilusória que fazem de significado e significante carris de uma linha percorrida em comum. O espírito sintáctico que troca de bom grado as regulares funções gramaticais, que abdica das partículas de ligação entre complementos, em prol dessa aceleração cognitiva, é um dos cavalos-de-batalha de todo o livro, malgrado a ténue noção de acontecimentos que serve de plasticina exterior, moldando o devir narrativo.
Não será difícil de intuir que a verdadeira intenção de Aragon não passa por uma narrativa de teor erótico (muito embora a provocação moral faça parte dos preceitos que uma boa parte da entourage surrealista cultivou com altivez), mas antes por uma exploração da dimensão psicanalítica, igualmente assumida como um dos elementos fulcrais da cartilha desenhada por André Breton. A sombra do incesto, a amoralidade perante o caudal sexual, a crueldade perante a humilhação, são alguma das pistas distribuídas. Em todo o caso, um livro a descobrir, uma reedição a saudar, um autor a manter vivo na memória de leitores mais jovens.
Sem Comentários