“A Catedral do Mar” (Suma de Letras, 2017 – reedição), de Ildefonso Falcones, é um livro largamente admirado – talvez até já se possa dizer que é um livro de culto -, pois ao longo de uma década não só se tornou num bestseller como, também, num longseller. Aliás, esta edição que temos entre mãos é isso mesmo: uma edição comemorativa do seu décimo aniversário.
Ildefonso Falcones celebra a devoção a Santa Maria Del Mar ou a Catedral do Mar através da luta e da saga que é a vida dos Estanyol, desde que, fugidos, pai e filho – Bernat e Arnau – chegam a Barcelona, corria o ano de 1320. A devoção não é à religião e aos senhores que servem a Deus, mas sim ao esforço de um povo, de uma casta, os bastaixos, para erguerem um momento que celebre a fé e a devoção que eles, pessoas simples, servos, têm a Santa Maria.
“– Monges, frades, sacerdotes, diáconos, arquidiáconos, cónegos, abades e bispos – recitava -, todos são iguais aos senhores feudais que nos oprimem! (…) – Bernat – advertia-o seriamente nos momentos em que a Igreja se convertia no alvo da sua ira -, nunca te fies nos que dizem servir a Deus. Falar-te-ão com mansidão e boas palavras, tão cultas que não conseguirás entendê-las. Procurarão convencer-te com argumentos que só eles sabem alinhavar até se apoderaram da tua razão e consciência.”
Neste diálogo conhecemos ainda Pere Estanyol, pouco antes da vida de Bernat dar uma reviravolta e entrarmos na saga que alimenta este livro. Vivemos lado a lado, ao longo de mais de 700 páginas, com Arnau, desde a fuga de ser um servo da Terra, para iniciar a sua infância às mãos da nobreza – também ela opressora e falsa – para, mais tarde, já livre – mas sofredor -, conhecer a servidão da paixão e do amor, seja o amor fraterno seja o do pecado original. O amor de irmãos entre Arnau e Joan conduz e condiciona algumas das decisões mais importantes, levando-os por caminhos que lhes mudam o destino – sendo esse o ponto mais alto e tenso de toda a história.
” – Não é culpa tua – sentenciou Joan.
– Não?
– Não. A malícia – explicou-lhe, sussurrando (…) – é umas das quatro doenças naturais do homem, que nascem por culpa do pecado original, e a malícia da mulher é maior do que qualquer das malícias que existem no mundo.
(…)
– Porquê?
– Pois porque as mulheres são como o ar em movimento, volúveis. Não
param de andar de um lado para outro como se fossem correntes de ar.”
Se há malícia neste livro!? Sim, talvez haja, tanto a ligada ao fogo da paixão como a ligada ao calculismo e à maldade, essa sim intrínseca a algumas criaturas. Mas há muito mais neste enredo: a guerra e a fé cega, corrupção e pobreza, devoção, fome, escravidão, procura do sentido da vida, submissão e abnegação, algum perdão, diversos tipos de violência, o pecado e o castigo, a salvação e uma centelha de esperança.
“A despedida de Arnau ainda ecoava nos seus ouvidos. Uma vez mais, Aledis sentiu as mãos enrugadas e ásperas do marido a percorrerem as suas partes íntimas. (…) O ancião beliscou-lhe a vulva. Adelis não se mexeu. O ancião beliscou-a de novo, com mais força, reclamando a falsa generosidade com que até então a mulher o havia premiado. (…) O ancião movia-se em cima dela como um réptil. Ela vomitou para o lado do leito. Ele nem deu por isso. Continuou a empurrar-se languidamente, ajudado pelas mãos, segurando no pénis e com a cabeça em cima dos seios de Adelis, mordiscando os mamilos que o asco impedia de crescerem.”
Existirão diversas cenas que arrepiarão e provocarão asco no leitor, sejam as de abuso ou as de violência típica da época medieval. Junto com as passagens mais intensas, a caracterização dos momentos históricos e os diálogos esclarecedores ou as descrições mais detalhadas, tudo se compõe para revelar um livro memorável e com um grande enredo construído por Falcones.
“O exército, concentrado na praia, rendia culto à Virgem do Mar. Pedro III cedera às pressões do Santo Padre e acordara uma trégua com Jaime de Maiorca. O rumor correu entre o exército. Arnau não escutava o sacerdote; poucos o faziam, a maioria tinha o rosto contrito. A Virgem não consolava Arnau. Tinha matado. Derrubara árvores. Arrasar vinhas e campos de cultivo perante o olhar assustado dos camponeses e dos seus filhos. Destruíra aldeias inteiras e. com estas, os lares de pessoas de bem, (…) Que guerra? Não passaram de matanças. Escaramuças em que só as gentes humildes perderam, os soldados leais… e as crianças, que passariam fome no próximo Inverno…“
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