Emma Becker, escritora francesa, nascida em 1988, actualmente a viver em Berlim, é uma extraordinária descoberta através do livro “A Casa” (Casa das Letras, 2021). Repetidamente galardoado em França, “A Casa” é um relato na primeira pessoa de dois anos e meio de vida de Emma Becker num bordel berlinense, opção que atribuiu à vontade de compreender a prostituição e as mulheres que a desenvolvem. Em perceber o que pensam, como é o seu ego e a apreciação que fazem de si mesmas enquanto mulheres. Emma procurou ter uma visão de conjunto, com imagens, perspectivas e flashes extraídos do contacto com as mulheres que viviam aquela vida, dos que viviam em torno delas e, de alguma forma, delas próprias e dos homens que pareciam não viver sem aqueles corpos.
Durante estes dois anos e meio, tamanho cuidado em ocultar a sua real intenção de lá estar para escrever um livro fê-la sentir-se um homem disfarçado de mulher, um voyeur fascinado pelos corpos, pela arte da sedução e da dissimulação, pela ténue fronteira entre o disfarce e a autenticidade, entre umas pernas dobradas, umas cuecas decotadas, a alvura de seios; corpos seminus imersos num mundo de surpreendente normalidade e confiança entre pessoas do mesmo sexo, que comentam com espantosa indiferença a ideia de terem relações com quatro, cinco, seis tipos por dia. Para estas mulheres, não é a quantidade de sexo que incomoda, é a vontade de o ter fora daquele contexto, de fazer amor, quando passaram o dia de trabalho com um determinado número de locatários dentro de si. É o desfio de ajudar o corpo a distinguir quando é para fingir e quando se quer mesmo sentir alguma coisa, o reaprender a sentir. Para estas mulheres, pouco interessa o que os outros pensam: o pior são as máscaras que impõem a si próprias e que podem tornar-se realidade.
“O seu corpo é um companheiro que ela ouve atentamente e pelo qual sente uma piedade doce nos dias de muito trabalho, quando volta para casa questionando-se se aquilo a que se dedicou durante oito horas se chama sexo ou apenas actividade física.”
No final do dia, ou da noite, como em muitas outras profissões, há quase sempre um cansaço agradável, que nada tem a ver com o sofrimento que muitos imaginam por nunca terem posto os pés num bordel. É uma lassidão do compromisso cumprido, da tranquilidade da escolha e da vida que continua para além do bordel. Isto é possível na Alemanha, reflecte a autora, por comparação com a França, onde a censura moral e legal da prostituição empurra estas mulheres para esquemas ilícitos, expondo-as ao poder e à corrupção de quem explora os bordéis e as ruas, sem que tenham possibilidade de se queixar de um patrão ou de um cliente abusivo, de ter protecção no exercício da profissão que escolheram, independentemente do porquê de o terem feito. Na Alemanha é diferente.
Na Alemanha, onde existe uma das leis sobre prostituição mais liberais da União Europeia, legalizada em 2002 e desde 2017 com uma Lei de Proteção à Prostituta, que tem como objetivo melhorar as condições de trabalho de profissionais do sexo, os bordéis precisam de uma licença de funcionamento e as prostitutas têm que se registar. Aqui, espaços como A Casa proliferam, ainda que nem todos iguais. Emma Becker teve uma primeira experiência, também relatada no livro, de entrada neste mundo, num espaço muito diferente da Casa, menos respeitador da mulher e no qual sentiu a ameaça da subjugação e a urgência de se desvincular.
“A Casa”, um bordel burguês, a vida quotidiana de uma prostituta, dará uma série espetacular, pelos detalhes judiciosamente expostos, pelos focos de luz e acção que oscilam entre a indolência e o êxtase, pela mensagem de humanização da realidade da prostituição porque, como a determinada altura refere a autora, os livros têm esse poder e, diremos nós, a sétima arte também, pelo seu poder de (trans)formação.
No início de cada capítulo e de um potencial episódio, há o mote dado por uma música, arte da autora de suscitar elementos da realidade e da expectativa. O leque e os ritmos são variados, como o são as emoções relatadas. Ao todo, 30 músicas de autores variados. Uma verdadeira banda sonora que importa descobrir, especialmente depois da leitura, ao estilo de playlist de Emma Becker na sua passagem pela Casa.
Vous qui passez sans me voire, Jean Sablon
Season of the witch, Donovan
Breezeblocks, Alt-J
Monolith, T. Rex
Spicks and Specks, The Bee Gees
Little Bird, The White Stripes
… até,
Strange Magic, Eletric Light Orchestra
Always See Your Face, Love
Bold As Love (instrumental), Jimi Hendrix
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