No final de “A Floresta do Avesso”, o primeiro volume do díptico A Aldeia das Almas Desaparecidas (ler crítica), deixámos o jovem Isaaque Zarco em Salamanca, a esforçar-se para salvar a adorada avó Flor de uma doença chamada Fogo de Santo António, que assumia proporções epidémicas nessa cidade. Isaaque tem 15 anos, é originário de Castelo Rodrigo – onde nasceu e viveu os primeiros anos da sua vida, na segunda metade do século XVII –, e professa em segredo o judaísmo, tal como muitos dos seus familiares e amigos, obrigados pela constante ameaça da Inquisição a ocultarem a sua fé. É uma frase desta avó marcante que dá título ao segundo volume, “Aquilo que Procuramos Está Sempre à Nossa Procura” (Porto Editora, 2023), o qual revela o resto do percurso de amadurecimento do protagonista, até fazer as pazes com o passado, tornar-se adulto e chegar a um destino seguro, onde poderá finalmente ser ele próprio.
Tal como o livro anterior, este é riquíssimo em pormenores, apresentando uma vasta galeria de figuras secundárias meticulosamente caracterizadas. Destaca-se aqui a personagem de Sálvia – uma anã enjeitada, acolhida e criada desde bebé pela avó Flor –, que só ganhou voz no final do primeiro volume e cujo caminho se entrelaçará irrevogavelmente com o de Isaaque. Algumas figuras que já conhecíamos permanecerão apenas na sua memória, enquanto outras continuarão a acompanhá-lo, como se unidas por fios de luz que estabelecem “ligações ocultas até entre os acontecimentos mais distantes”, evocando crenças cabalísticas que defendem que “não há acidentes, nem coincidências…”.
Já depois de regressar ao Porto, onde retoma a aprendizagem de alfaiate e a colaboração com a sinagoga clandestina, Isaaque vê-se obrigado a viajar de novo para Espanha, desta vez até Madrid, para onde a avó foi levada depois de detida pela Inquisição. A experiência nessa cidade, onde as humilhações dos presos e as fogueiras funcionam como “um presente do rei aos seus súbditos… um entretenimento de verão”, culmina num auto de fé que transforma o jovem, até então confiante na bondade dos outros e seguro do seu lugar no mundo. Contudo, tal não o impedirá de arriscar a vida para salvar outros judeus muito próximos, entretanto denunciados, concebendo para isso um plano inspirado nas lendas gregas que o fascinam desde a infância.
Embora o terror desencadeado pela intolerância religiosa seja um tema central, a narrativa denuncia múltiplos tipos de violência nascida do preconceito, abrangendo também a discriminação baseada na orientação sexual – através dos amigos homossexuais de Isaaque – e até na aparência física – através de Sálvia, que nem sequer tem a possibilidade de beneficiar das máscaras que judeus e homossexuais usam para sobreviver e que fazem deles excelentes actores de teatro, como Isaaque vem a descobrir.
É com grande realismo e humanidade que o autor, Richard Zimler, recria o quotidiano destes grupos específicos numa época adversa, através de um protagonista que interpela o leitor, oferecendo-lhe a sua história com o objectivo de inspirar todos os injustiçados.
Sem Comentários