Numa magistral escrita, em contínua miscelânea do passado com o presente, esta história faz uma ode ao envelhecimento e à velhice, nos olhos e na mente, com a lucidez de que o próprio passado é parte integrante do próprio presente – e que, se deixar de o ser, a vida perderá todo o sentido.
“A Agenda Vermelha” (Porto Editora, 2019), romance de Sofia Lundberg – escritora escandinava e antiga editora de revistas -, é uma história melancólica, contada de forma fluída com a cumplicidade e proximidade entre a personagem principal, Doris (de 96 anos de idade, a viver sozinha em Estocolmo), e a sua sobrinha-neta, Jenny (jovem mãe americana de 32 anos), a única familiar que tem e com a qual contacta semanalmente via Skype, manuseando com mestria o seu computador.
No final da vida, sobrevivendo – em termos de manutenção doméstica e de higiene pessoal – com a ajuda de várias e muito diferentes cuidadoras domiciliárias, a carismática Doris escreve – em legado à sobrinha-neta – as suas memórias numa agenda vermelha, de uma vida recheada de emoções, sentimentos e paixões vividas em diferentes continentes.
As conversas com a sobrinha-neta levam-na de volta à sua própria juventude, tornando mais suportável a iminência da morte. De forma lúcida, escolhe as histórias relacionadas com aqueles que conheceu e amou, riscando os nomes dos que já morreram no momento em que escreve sobre eles.
“A Agenda Vermelha” é um romance original sobre a velhice, que comove porque diz verdades insofismáveis sobre o nosso envelhecimento, numa jornada impressiva sobre a passagem do tempo: ”Uma pessoa bela é ouvida, admirada. Isto tornou-se bem claro para mim mais tarde, quando a minha pele perdeu a elasticidade o meu cabelo começou a ficar grisalho. Quando as pessoas deixaram de olhar para mim ao atravessar uma sala. Esse dia chega sempre. Para todos”.
Desse passado sobressai a sua amizade com o pintor modernista Gôsta Adrian-Nilsson, o trabalho como manequim em casas de alta-costura em Paris e a fuga de França com a pequena irmã, no auge da II Grande Guerra a bordo de um barco bombardeado pelos soldados nazis, recriando uma existência plena – uma existência de quem observou atentamente o mundo circundante, lugar de crises, guerras, abusos e redenções.
Em entrevistas, a autora refere ter-se inspirado na sua tia-avó paterna, que tinha uma agenda vermelha com a maioria dos nomes riscados onde ao lado se lia: Morto – Morta; e, também, que se inspirou igualmente no tio do avô materno, um artista desprezado e gay, pobre e com um amor enorme pela cidade de Paris.
Um retrato optimista sobre o poder da memória, como sustentação quotidiana da própria existência – mesmo que sob momentos de doença ou fragilidade. Uma ode à velhice e à solidão que a todos toca ou vai tocar.
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