Que venha 1795. Depois de há pouco menos de um ano, em “1793”, termos tomado consciência do poder criativo e narrativo do sueco Niklas Natt Och Dag, eis-nos novamente esmagados com a sua capacidade de transformar o relato histórico em cenários cinematográficos, de criar personagens inverosímeis, de adensar o mistério em cenários dantescos, aumentando a ligação do leitor à linguagem e à sua representação.
“1794” (Suma de Letras, 2020) retoma algumas das personagens fulcrais presentes no anterior livro, tais como o ex-militar Cardell, que é uma vez mais ressuscitado à iminência de sucumbir à degradação física e moral, capaz de continuar a lutar pela resolução de mais um crime e mistério hediondo. Através dele é possível acompanhar a suprema capacidade da superação da dor física, do desalento e da desistência moral. Anna Stina Knapp, uma mulher gasta pela vida e pelo sofrimento, com uma trajectória cheia de provações, volta a cruzar-se com Cardell, vivendo ambos experiências improváveis de entrega e luta pela sobrevivência.
Estamos perante perto de 500 páginas de um argumento rico e complexo, extraordinário na capacidade de sugestionar emoções ao mesmo tempo que retrata, epicamente, comportamentos bárbaros e o limiar da resistência humana, tanto das personagens centrais como dos elementos figurantes que gravitam em Estocolmo, em plena monarquia absoluta e governação Gustaviana – época conhecida pelo poder déspota exercido sem pudor. Tal como em “1793”, trata-se de continuar a seguir, numa fase especialmente crítica da Suécia, a vida cosmopolita à volta dos portos, da movimentação e enleio entre marinheiros em terra, mulheres sem vida própria e uma autoridade que exercia o poder à força, prendendo, castigando e matando como se de espectáculos se tratasse. No apogeu da escravatura no Atlântico Norte, Niklas Natt Och Dag explora ainda cenários que retratam a política e o comércio de escravos na Suécia, a complacência da maioria e a insípida resistência. Paralelamente, retrata as respostas à época para a doença mental, fazendo-nos entrar em hospitais e hospícios, em salas pejadas de gente e de dejectos, de insanidade gritada e silenciada, mais uma vez, da forma como a sociedade respondia aos seus excluídos.
Na loucura, na pobreza, no género e na idade, Niklas Natt Och Dag revela as mais intensas formas de poder e de exclusão, criando um imparável fluxo de loucos ou de tresloucados, carentes de amor, cuidado e respeito, situando cada ser que nasce numa potência de beleza e de horror, uma roleta russa sem retorno possível.
Retomemos o início – que chegue 1795 e que Jean Michael Cardell, antes sapador-mor de artilharia e agora quadrilheiro da guarda municipal de Estocolmo, continue a demonstrar como é ténue o limiar da sobrevivência e da sanidade.
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