Ilustradora profissional há mais de 15 anos, Rita Correia tem surpreendido com os seus projectos inovadores, em que acumula autoria e ilustração, juntando sensibilidade, criatividade e um enorme respeito pelas crianças e pelos livros.
Com duas obras publicadas em edição de autor enquanto autora-ilustradora, Rita Correia falou ao Deus Me Livro do «atrevimento da edição por conta própria», partilhando a recompensa das missões cumpridas. Uma conversa de afectos e ideias.
Autora e ilustradora, mais ilustradora do que autora? Em que papel se sente melhor definida?
O ideal seria não ser preciso separar a palavra “autor” da palavra “ilustrador”, uma vez que, para mim, o ilustrador é também autor, principalmente nos livros/álbuns ilustrados. Considero-me por isso muitas vezes uma ilustradora-autora que, por acaso, também gosta de escrever as suas próprias ideias. Uma das minhas lutas tem sido, precisamente, fazer com que o ilustrador seja considerado também autor, principalmente porque os livros/álbuns ilustrados não poderiam nunca funcionar sem um “autor escritor” e um “autor ilustrador” juntos! Se me considero mais escritora ou ilustradora – sem dúvida que é na ilustração que está a resposta.
Enquanto ilustradora, ilustra livros escritos por outros. Como caracteriza esse desafio? Como é que as ilustrações se encaixam no ambiente das palavras do autor?
Ilustrar para outros autores faz parte do meu trabalho principal, foi assim que mais cresci como profissional neste meio. Como me considero bastante versátil nas técnicas que desenvolvo, costumo fazer um trabalho prévio com o escritor para perceber até que ponto determinada abordagem é a ideal para aquele projecto específico. Gosto de personalizar, de ir ao encontro das ideias do autor, mas tentando também não comprometer a minha identidade como ilustradora.
Tem dois livros publicados através de edições de autor. Porquê?
As edições de autor surgiram naturalmente. No primeiro livro – “Um livro para ti” – confesso ter sido um pouco mais assustador, pois era a primeira vez que me aventurava em algo do género. Ainda tentei perceber se alguma editora poderia querer apostar neste projecto, uma delas chegou a responder-me recusando gentilmente. Segundo esta editora, o livro não seria “vendável” porque incutia a partilha do mesmo. Foi nesse momento que tive a certeza de que a edição de autor era o único e o melhor caminho. A verdade é que a minha intenção, quando decidi avançar, nunca foi a do lucro, mas a de espalhar uma mensagem que considerava e considero urgente e importante. Também percebi que, mesmo que não conseguisse lucrar com o investimento da edição de autor, poderia sempre utilizá-lo como portefólio, pois não só me mostrava como profissional dentro da ilustração, como me dava a conhecer a mim e aos valores em que acredito. E funcionou! Felizmente este livro – e o atrevimento da edição por conta própria – acabou por me abrir muitas janelas e oportunidade únicas que fazem toda a diferença em muito do que hoje faço.
Quais as vantagens e dificuldades de uma edição de autor no panorama editorial português?
A maior vantagem é a de poder controlar todo o processo e todos os pormenores do que quero e do que decidi; depois, ter a oportunidade de contactar directamente com quem me procura pelo livro, pelo projecto ou pelas ilustrações – isto não seria tão viável se os livros estivessem disponíveis pela forma tradicional. Ter o feedback directo dos miúdos, dos pais, dos educadores é mesmo muito gratificante. As desvantagens passam por ter de despender, não só do investimento financeiro inicial, como também muito tempo e energia, seja na divulgação constante para que chegue ao máximo de pessoas possível, assim como toda a parte burocrática que um projecto em edição de autor envolve. Tem de se ter em conta uma quase total disponibilidade para trabalhar um projecto assim e, se por um lado, no meu caso tudo se simplifica por eu ser uma espécie de “faz-tudo”, por outro ainda não me consigo desdobrar em três, e estar em vários sítios ao mesmo tempo, como já aconteceu… para não falar nos meus filhos que também vão reclamando cada vez mais o tempo da mãe para eles.
Será que se os livros tivessem sido editados sob uma determinada chancela seriam os mesmos?
Sinceramente, acho que não. Não estes. O primeiro foi feito de uma forma que fazia todo o sentido ser um projecto de autor e o segundo acabou por ganhar com a experiência do primeiro em cima da mesa. Inconscientemente fiz o “O meu nome é…” já a pensar como ele iria funcionar em edição de autor, pelo que nem sequer cheguei a procurar uma chancela em Portugal para este.
“Um livro para ti” é um livro para ser partilhado, para ir de mão em mão, de casa em casa. Esse objetivo tem sido atingido? Que relatos tem recebido dessa experiência?
Tem havido muita batota! (risos). Grande parte das pessoas deixam-me o seu testemunho a desculparem-se por não conseguirem deixar o seu livro “partir” para outras mãos. Outras têm tanta curiosidade em saber o que acontece quando ele é partilhado anonimamente na rua, que compram um segundo exemplar para fazer essa experiência (o que não deixa de ser batotice na mesma, porque continuam a ficar com o primeiro… e partilham outro que não o seu original). Esta é a parte irónica do “tal” problema apontado pela editora. Mas houve algumas excepções: Tive uma rapariga que me contactou dizendo que tinha encontrado o meu livro e ficado tão maravilhada com a proposta que decidiu fazer o livro correr pelas casas de toda a sua família e amigos. Só quando regressou às suas mãos, ela decidiu partilhá-lo tal como proponho: deixando-o “perdido” também num parque infantil, como o achou. Disse-me que não foi fácil, mas não concebia que a mensagem ficasse parada em sua casa numa prateleira qualquer! Deliciei-me, claro! No geral, a gratificação de receber estes testemunhos, na primeira pessoa, é sem dúvida uma das grandes vantagens.
“O meu nome é…” é um livro-desafio. Há uma palavra que tem de ser descoberta e que completa o título. Qual o feedback que tem recebido? Todos os leitores encontram “a” palavra?
Só uma leitura muito desatenta não consegue descobrir o nome escondido. O feedback tem sido espantoso e tem confirmado que não só as crianças gostam de livros/jogos como também os adultos. Neste caso, percebem que é um livro para ser trabalhado em equipa, e são as crianças as primeiras a “puxar” os pais para a descoberta de todos os segredos.
Sabemos que visita escolas levando os seus livros às crianças. O que traz para casa e para o seu trabalho, desses encontros?
Muita inspiração. Os miúdos são fontes inesgotáveis de energia. Muitas vezes, se lhes dermos oportunidade, eles dão-nos as respostas mais simples até para os problemas que achamos ser muito complicados! Por saber que são também muito permeáveis a tudo o que lhes é mostrado (seja bom ou mau), há uma grande responsabilidade em tentar mostrar-lhes os melhores e mais importantes exemplos. Como adultos, temos muito para reaprender com eles.
Os seus dois livros não se limitam a ilustrações e a palavras. Neste segundo, por exemplo, há um arco-íris para construir. Como surgem estas ideias? São indissociáveis do projecto de construção do livro ou premeditadas?
Na minha vida continuam muito presentes as minhas memórias de infância. O que me mais me fascinava nos livros a que tinha acesso eram precisamente aqueles que iam para além do livro “normal”: ou porque as páginas tinham janelas, ou porque tinha de procurar algo escondido, ou porque o livro tinha alguns pop-ups e badanas para mexer os olhos das personagens. Os meus livros são, por isso, também um reflexo destas memórias felizes com os livros que a mim me faziam vibrar. Conseguir incluí-las dentro dos meus projectos é como se respeitasse a criança que fui. Perceber que essa linguagem simples também mexe com as crianças “tecnológicas” de hoje em dia é espantoso.
O livro “O meu nome é…” está a ser trabalhado por uma equipa de psicólogos numa Unidade de Cuidados Paliativos. Como é que se reage a uma notícia destas?
Com um profundo sentimento de humildade e de missão cumprida em relação ao fundamento deste livro! Tenho uma amiga que trabalha na área e levou um exemplar. Foi ela que me deu esta notícia. Fiquei mesmo com a sensação de que todo o tempo despendido em cada detalhe, cada pormenor… e até cada cêntimo investido neste projecto, foi totalmente recompensado com este testemunho.
Olhar para um livro da Rita Correia é saber, de imediato, que o trabalho é seu, que está ali o seu traço. Onde reside a sua identidade no seu trabalho?
Não tenho muito essa noção… acho que não tenho um traço muito definido! Tanto faço ilustração recorrendo às técnicas manuais e mais puras, como ilustração 100% digital, em cartoons, ou com base em fotografias reais. O tempo exigido e quase sempre limitado, acaba por ditar esta utilização de várias técnicas. Mas talvez o que mais me identifique seja a minha forma de trabalhar os afectos, os valores ou até mesmo a revolta. A forma como transporto tudo isto para as minhas ilustrações, sempre com base nas minhas emoções e no que estou a viver no momento, é algo de que não consigo alhear-me. As minhas ilustrações raramente são separadas de quem sou.
O que se segue?
Para já continuo a percorrer as escolas com o “O meu nome é…” e a participar em novos projectos de ilustração para outros autores, dos quais ainda nada posso revelar.
Ao mesmo tempo fervilha uma nova ideia para um terceiro livro inédito que, claro, a avançar irá basear-se nos mesmos princípios e valores dos anteriores. Os pedidos continuam a chegar pelo novamente esgotado “Um livro para ti” e também terei de ponderar uma possível 3ª edição, assim consiga medir bem o risco financeiro que todas estas decisões acarretam. Muito trabalho do bom, poucas horas de sono e justas reivindicações dos filhotes é o que se segue. Haja saudinha, como diziam os meus saudosos avós.
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