O último romance de Miguel Real, “O Último Europeu” (Dom Quixote, 2015), está aí. O autor deixou o passado, que o tem ocupado há muito, e decidiu partir para o futuro. A acção situa-se na Europa de 2284, composta por Baldios governados por clãs guerreiros que escravizam as populações esfomeadas, um futuro “medieval”.
No entanto, dentro desta Europa existe uma Nova Europa isolada da restante, que através da Ciência e da Tecnologia criou um mundo de felicidade sem sofrimento. O sexo não serve para procriar, as crianças são produzidas em Criatórios, a educação sem livros é tecnológica e altamente eficaz, não se trabalha e não existe individualismo para que a Comunidade seja forte. Mas a Grande Ásia, com excesso de população e extremamente beligerante, vai atacar e destruir aquilo que parecia indestrutível. O último velho europeu, um Reitor, estudioso do passado, vai, com alguns sobreviventes, refazer uma boa Europa nos Açores, e escrever para deixar testemunho. Mas, e a América?
Um romance científico e filosófico, que nos obriga a pensar e a fazer perguntas às quais deveremos ensaiar respostas. Falámos um pouco com Miguel Real.
O que o motivou a escrever um livro de ficção científica, acção situada em 2284, tão inesperado no conjunto da sua obra?
Mais do que um romance de ficção científica, “O Último Europeu” aborda a questão da possibilidade de realização de uma Utopia. Hoje, após duas guerras mundiais e a publicação dos romances de Aldous Huxley e G. Orwell, à descrição de uma Utopia deve juntar-se a descrição de uma Distopia (utopia negativa). Foi o que fiz com a “Nova” e a “Velha Europa”.
Estava também cansado do romance histórico. Nos tempos mais recentes, o romance histórico foi assaltado por autores culturalmente impreparados, que não investigam o suficiente. Não consigo concorrer com a sua falta de conhecimento histórico. Por isso, afastei-me temporariamente. Decidi partir para o futuro. Inspirei-me na Utopia de Thomas More, que agora comemora os 500 anos.
Implicou certamente muita pesquisa científica e tecnológica, tal como o romance histórico implica muita pesquisa histórica. São dois tipos de viagem no tempo. Qual o mais estimulante para si?
Neste momento de crise sobre as antigas referências históricas, a imaginação sobre o futuro é para mim mais importante do que a descrição do passado. O futuro é profundamente estimulante, já que as referências do presente são muito vagas, sempre ultrapassadas pela inovação científica e tecnológica.
Esta utopia está fortemente enraizada numa análise social, política e cultural do presente, projectando um mundo desolador e apocalítico. Está assim tão pessimista quanto ao futuro da Humanidade?
Eu não estou pessimista, a realidade é que é profundamente caótica e apocalíptica, a injustiça e a desigualdade sociais atingem níveis mundiais nunca existentes e os Estados parecem preparar-se para uma guerra a médio prazo como defesa da Europa clássica. Pretendi tornar claro que a tecnologia hoje também pode iluminar e libertar a sociedade e, sem ela, a humanidade não conseguirá alimentar e satisfazer os desejos e a realização social e pessoal dos previsíveis 10 biliões de habitantes.
Porque escolheu a Europa, uma Nova Europa, como o único lugar que construiu uma sociedade talvez boa para viver e não bélica, apenas defensiva? Sem trabalho nem sofrimento…
Esse é o meu desejo pessoal – gostaria de viver numa Europa onde a tecnologia permitisse a vivência harmónica com a natureza e entre os homens. É possível esta Europa se hoje não cedermos à ganância cobiçosa do dinheiro. Se cedermos, tornar-nos-emos em breve na “Velha Europa”, conduzida por chefias militares.
Pela situação cultural e política da Europa de hoje, este continente, depois de ter dominado o mundo durante 3 000 anos, parece caminhar para a decadência. Possivelmente, a Europa pouco contará nos próximos séculos se não se afirmar de um modo decisivo como defensora de duas bandeiras – os direitos ecológicos e os direitos humanos. É o que lhe resta para se afirmar na política mundial. Não já a superioridade intelectual nem a superioridade religiosa.
E o Oriente, a China, como ameaça exterminadora total? “O calculismo frio e cruel dos Mandarins” e “a curiosidade infantil do povo americano”, que nos vão liquidar a nós europeus, representa uma visão que lhe é dada pelo mundo actual?
Não, é pura imaginação. Não sabemos hoje como se comportará no futuro a Grande China e o Império Americano. Foi a utilização de uma técnica narrativa para adensar a intriga.
Sociedades ferozmente e tecnologicamente regulamentadas, vivendo em ditaduras eventualmente felizes, com um número de habitantes tal que não é possível a democracia, mas uma invenção política rebuscada e audaciosa. Este é um futuro para o Ocidente…
O futuro está em aberto. Não proponho nem uma nem outra solução. Quero que o leitor pense sobre o futuro e apresento-lhe cenários alternativos. Ele, com o seu voto, que decida em que partidos deve votar para que se concretize uma boa solução de futuro. Cabe-lhe escolher, a mim cabe-me motivá-lo a reflectir.
Porquê os Açores terem sido escolhidos para uma experiência diferente? Local privilegiado entre a Europa e a América?
Sim, os Açores são ainda hoje um pequeno paraíso, lá ainda podemos sonhar a criação de uma futura e bela utopia – sobretudo nas ilhas mais pequenas e menos densamente povoadas.
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