Não é possível resistir-se à misteriosa áurea que tem sobrevoado o novo romance de Claudia Clemente, “A Casa Azul”. Como tal, também não foi possível resistir à tentação de meter dois dedos de conversa com a autora. Portuense, com formação em Arquitectura, Claudia Clemente granjeia-nos com um leque de personagens que, não só reflectem a sua visão do mundo, como também a sua “paisagem interior”.
Folheando o livro, damo-nos conta da presença de elementos naturais e de elementos memorialísticos (como a casa azul). De onde veio essa inspiração?
O livro teve como ponto de partida uma casa azul, real, construída na cidade do Porto nos anos 50. Nessa casa – onde passei a minha infância, adolescência e onde regressei inúmeras vezes já adulta – e por entre as suas árvores, ficou inevitavelmente parte de mim. Com a sua destruição, fui confrontada com a desaparição do espaço físico onde essas memórias se concentravam. Dessa sensação desconcertante de perda e de quase orfandade nasceu o livro.
A sua escrita é bastante directa e eficaz, apenas é dito o necessário. É também um estilo muito íntimo, não tanto descritivo da paisagem material mas sim da paisagem mental, muito emotiva e sensorial. Pensa que isso espelha a sua visão do mundo?
Escrevo sobre aquilo que me interessa, aquilo que me questiona, que me obriga a refletir. Normalmente é na “paisagem interior” que encontro esse interesse, ou essa motivação. Contacto cada vez menos, de forma directa, com o mundo exterior – na realidade, o menos possível. Talvez isso acabe por se espelhar na minha escrita.
Existem alguns escritores ou personalidades que a inspirem, tanto na escrita como na sua vida?
Correndo o risco de me tornar repetitiva: Cortázar, como sempre.
A história revela-se uma narrativa bastante cinematográfica. A sua experiência em Cinema contribuiu para uma construção da história?
Inevitavelmente, mas também a minha formação em Arquitectura. Talvez escreva como quem monta ou como quem constrói um edifício. Não funciono em “compartimentos estanques”, e assim, as diversas formas de conhecimento que vou absorvendo acabam por se contaminar umas às outras.
Um dos aspectos mais marcantes do livro é a maneira como as personagens são retratadas: são humanas, com defeitos. Como conseguiu passar essa humanidade para o papel?
Aquilo que mais me interessa nas pessoas tem precisamente a ver com os seus defeitos, a sua ausência de perfeição – aquilo a que se pode chamar a sua humanidade. Concebi cada uma dessas personagens partindo do seu principal defeito, e deixei-os crescer de forma orgânica, em espiral, enrolando-se em torno dele.
Enquanto arquitecta a narrativa, tem um ponto de partida para a acção central, para o esqueleto das personagens?
Neste caso específico, os quatro elementos primordiais serviram de “eixo central”, mas não foi uma opção que tenha tomado desde o início. À medida que ia pensando nos personagens, cada um deles me foi surgindo com características específicas que o aproximava de um elemento, ar/água/terra/fogo. Só quando me fui apercebendo desse fenómeno é que voltei atrás e me adaptei a essa ideia: reestruturei o livro em torno dos elementos. Na verdade, é como se tivessem sido eles, os personagens, a ditar-me o seu próprio esqueleto, e não o inverso.
Sente-se realizada com a publicação do livro ou mudaria já qualquer coisa nele?
São duas questões diferentes: sim, sinto-me muito realizada com a publicação do livro e sim, provavelmente teria a tentação de mudar alguma coisa – e por isso ainda não o voltei a ler, desde que foi publicado.
Houve algum livro em particular que mudou a sua vida?
“Rayuela”, claro, mas também a colectânea de “Contos completos” de Cortázar, e as “Histórias de Cronópios e de Famas”, mas também Borges – o “Ficções”, “O Livro de areia”… na verdade a lista de livros que mudaram a minha vida é demasiado extensa para caber nesta resposta, vai ficar tristemente incompleta.
E em relação ao futuro? Existem planos a traçar, livros por fazer, sonhos por cumprir?
Agora tenho de terminar o meu filme sobre Júlio Cortázar, que iniciei há 15 anos…E uma vídeo-instalação intitulada W.A.M (woman| artist|mother) sobre maternidade e criação artística. Estou a preparar um documentário sobre Abel Salazar, e queria realizar em breve a minha primeira longa-metragem. Estou já a trabalhar no próximo romance, claro. E tenho tanto para aprender, ainda.
Fotografia: João Silveira Ramos.
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