No ano do centenário do nascimento de um dos mais marcantes escritores portugueses do século XX, a Quetzal tomou em mãos a nobre missão de (re)editar a sua obra, além de oferecer, aos coleccionadores e adeptos das citações, um livro que apresenta “1000 Frases de Vergílio Ferreira” (Quetzal, 2015), seleccionadas e organizadas por Luís Naves, escritor que tem também os seus dois últimos romances publicados pela editora.
Reconhecido por muitos como um dos mais completos e emblemáticos autores portugueses, Vergílio Ferreira (1916-1996) tem uma vasta obra distribuída pelo romance, contos, ensaio filosófico e literário, além de nove volumes de diário.
O livro de citações está dividido em temas como Amor, Crença, Melancolia, Portugal ou Sabedoria, sendo apresentado, para cada uma das frases, a fonte literária a que foram arrancadas, resultando em qualquer coisa como – da nota do editor – “pequenos furtos isolados” à obra de Vergílio Ferreira.
A par de “Aparição” e “Longe, Fica a Estrada”, chegou às livrarias “O Caminho Fica Longe”, o primeiro livro de Vergílio Ferreira escrito em 1939 e publicado quatro anos mais tarde. Juntamente com “Onde Tudo Foi Morrendo” e “Vagão J”, integra a trilogia neo-realista que inaugura a obra do autor, introduzida ao longo da narrativa através dos escritos de um colega de Rui, o protagonista do romance.
A acção passa-se em Coimbra, num meio universitário feito de muita boémia e, também, de algum estudo. Rui é filho de pais pobres, e é nele que a sua mãe – que a certa altura vem viver para Coimbra para acompanhar o filho – deposita as esperanças da família para sair de Coimbra com o canudo de médico debaixo do braço.
Rui é um rapaz extremamente inseguro, com pouco jeito para as miúdas, franzino, débil, enfezado e com umas pernas feitas de osso e pêlo. Ainda assim estabelece uma relação de namoro com Amélia, uma rapariga que “tinha no curveado do corpo uma sinalização para a cama”, segundo rezavam as crónicas masculinas da época.
Provinciana e desconhecedora dos fortes códigos de então, Amélia acaba por se vestir e comportar de uma forma que será mal interpretada, que nos dias de hoje rotundaria em nomes como “galdéria”, “maluca” ou “oferecida”. Facilmente influenciável pelo seu amigo Rodrigues – que segundo Rui “teria o sentido justo de equilíbrio na vida” -, Rui desiste do namoro, ficando o leitor com a ideia de que há algo de muito desajeitado nele próprio, um medo do contacto físico e de se perder na nebulosidade e incerteza do amor – e ao mesmo tempo de conseguir compreender a mulher.
O romance é todo ela atravessado por uma grande melancolia, mas sobretudo pela ideia de que, para encontrar a salvação própria, é necessário salvar primeiro os mais carentes, ainda que essa relação se resuma a uma relação sem grandes laços de intimidade ou afeição. A escrita de Vergílio Ferreira é económica mas bem-posta, sempre com o piscar de olho à poesia e um olhar acutilante sobre o mundo ao estilo de um guião cinematográfico: “Dez horas da manhã. A carroça do lixo ainda solavanca pelas ruas. No café do Pirata, estudantes bebem à pressa copos de leite. Fora, gumes de frio. Cigarro ardendo. Olhos papudos de sono. Raparigas pintadas de fresco desengonçam-se nos sapatos empinados e lentes austeros descem preciosamente dos eléctricos, suspendendo pastas de viajantes”. Ainda que esteja longe de ser um dos seus livros maiores, reside neste “O Caminho Fica Longe” a fundação da escrita Vergiliana, nele se encontrando os temas que vão fazer parte de toda a sua obra literária.
Sem Comentários