António Cabrita, escritor, guionista, jornalista e crítico que durante dezanove anos publicou no Expresso muita crítica literária e cinematográfica, nasceu em Almada e vive em Moçambique. Em “Um Espião na Casa do Amor e da Morte” (Arranha-Céus, 2015) fala-nos sobre violência doméstica, produzindo uma reportagem-manifesto contra a violência de género. Fá-lo por referência a Moçambique mas notando a existência do problema noutros países – nomeadamente Portugal -, definindo-o como “uma guerra não declarada contra o feminino”.
Este livro surge na sequência de uma série de vídeo-reportagens, produzidas conjuntamente com a actriz e produtora Ana Magaia, em 2010. De Maputo a Nampula, em oito províncias de Moçambique, entrevistou centenas de mulheres. Os guiões para oito vídeo-reportagens foram sentidos como sendo psicologicamente esgotantes e comprometedores. O contacto com a realidade, os muitos relatos na primeira pessoa das mais atrozes barbaridades praticadas em contextos de intimidade familiar, são fornecidas neste livro como reacção à persistência do problema, à passividade da sociedade e à inoperacionalidade das instituições.
Fá-lo “não como académico ou como ensaísta mas como homem, … um relato-reflexão que não renuncia ao seu lastro emocional”, durante o qual procura, num registo nem sempre facilitador da leitura, associar o relato jornalístico e o ensaio. Deslizando para considerações filosóficas, notas mitológicas e apontamentos biográficos, fragiliza em alguns momentos a objectividade do raciocínio. Ainda assim, são intensas, demonstrativas e comprometedoras as situações apresentadas de casamentos prematuros, forçados pelos pais como forma de colmatar problemas económicos da família; mal-formações físicas das parturientes precoces; abandono de crianças, vítimas colaterais da violência; poligamia; auto-estimas destruídas e vidas dependentes de agressores; e, não menos relevante, perda de paridade na intimidade.
Um problema de educação, de tradições (dando ao costume e à ancestralidade o alibi para as maiores atrocidades), de moral, de crueldade e sacrifício, de alcoolismo, de falta de perspectivas e indiferença, de construção social do feminino: “o homem vale tudo porque, dizem e repetem os patriarcas, tem um pincel encantado, a mulher é a sobra dos humores dele”.
Um drama em nome individual, porque as vítimas existem e têm uma identidade, mas também um problema colectivo, a apelar a novas estratégias de combate – trabalhar com os homens não só como parte do problema mas, também, como parte da solução.
Desde 2009 que Moçambique tem uma lei que qualifica a violência doméstica como crime público e condena as várias formas de violência, desde a física e psicológica à violência sexual. Apesar disso, muito trabalho subsiste por fazer, tanto em termos de logística como em termos de consciencialização. O autor deixa clara a lacuna que persiste em termos de consciência cívica, mesmo ao nível das instituições públicas, tanto no reconhecimento do problema como no socorro e protecção das vítimas. Uma questão de consciência cívica para a qual procurou contribuir com este registo claramente dramático.
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