Um romance à antiga é uma de entre as possíveis descrições para “Um Anjo Impuro” (Editorial Presença, 2015), livro de Henning Mankell, o autor sueco mais conhecido e versado no estilo dos contos policiais. A história real de Hanna Lundmark, sua conterrânea, terá sido o mote para a mudança.
Por momentos relembram-se episódios escondidos na RTP2, o mais próximo que temos de uma espécie de evocação recente da nossa história colonial: as séries e documentários passados em horários pouco nobres, quase que a empurrar as memórias para obscuridades latentes.
Nas ex-colónias os nativos eram escravos, mesmo quando isso já havia sido orgulhosamente abolido anos atrás, o que deixava qualquer branco que para lá emigrasse numa posição social elevada – ou, pelo menos, acima da que ocuparia no país de origem.
O fenómeno migracional recente permite a qualquer um, por mais distraído que esteja, perceber essa ânsia que o homem/mulher têm por atingir determinado padrão de vida. É o que sucede a Hanna que, em pouco tempo, muda de pobre camponesa nos campos gelados do norte Sueco para proprietária de um bordel na atípica cidade de Lourenço Marques. Pelo meio enviúva 2 vezes e ganha um estatuto social igual àquele que antes dispunha na sua Suécia natal.
Rápida e mais ou menos facilmente, passa das chapadas nas comensais negras a defensora dos direitos duma mulher que mal conhece, que mata o marido perante a sua vista, o qual era uma das poucas pessoas em quem depositava confiança. Confuso?
Será porventura bizarro, mas o crescendo de emoções que a personagem absorve permite tal situação. A sua falta de sentido de estar e ser, a incapacidade de adquirir paz de espírito e dificuldade em encontrar a sua posição no mundo – e mais concretamente na sociedade em que está inserida – adivinham mudanças radicais mais ou menos tardias.
«Sentia o passar dos dias como se os vivesse num estado de quase transe. Fazia um calor asfixiante, ocasionalmente quebrado por chuvadas passageiras. Hanna passava a maior parte do tempo a abanar-se com um leque, sentada numa das salas em que a brisa do mar penetrasse pelas janelas abertas. Sentia-se como se estivesse à espera, embora não soubesse de quê.»
No prefácio do consagrado Mia Couto, a descrição que este faz de Mankell alerta para essa ambiguidade do autor, a capacidade de pôr, na mesma “trincheira”, a alma e a condição humana, quantas vezes separadas e divergentes pelos mais incoerentes motivos. Podemos ser “bons” em pensamento, mas somos sem dúvida classificados por aquilo que fazemos.
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