A expectativa é alta quando o autor promete, nas primeiras páginas do livro, mistério, aventura e, quiçá, o desvendar de uma terrível conspiração na morte de Rei D. João II. Ou, também, quando oferece uma introdução auspiciosa com uma personagem principal que fez parte do corpo de ginetes, guarda pretoriana do Rei, ao jeito de Guilherme Baskerville do “Nome da Rosa”.
A suspeita de envenenamento do monarca que, no final do Século XV, investiu na política de exploração marítima, dá ideia de que “Príncipe Perfeito – Rei Pelicano, Coruja e Falcão“ (Arranha-Céus, 2015) aproveitará a vertente do mistério, fazendo do narrador protagonista, uma espécie de Sherlock Holmes na procura das respostas. A expectativa, porém, esmorece, e a promessa inicial é substituída pelo relato factual da ascensão do Príncipe a Rei. O protagonista, desterrado na ilha da Berlenga, recorre a uma analepse para recordar um rol interminável de datas e factos históricos e relatar a forma como Dom João II esvaziou de poderes muitos fidalgos portugueses depois de suceder a Afonso V.
Aos poucos, deixamos os domínios do romance histórico para entrar num manual de história, puro e duro, dedicado ao início do reinado de Dom João II. As curtas incursões pela ilha da Berlenga onde o narrador revive o passado não são suficientes para imprimir a dinâmica necessária ao romance, e a substituição prematura da trama prometida de início pelo enfadonho desenrolar de nomes de príncipes, fidalgos Portugueses e Castelhanos, datas de batalhas e tratados e factos históricos pouco conhecidos acaba, em poucos capítulos, com a expectativa de um livro interessante de ponto de visto da narrativa e da ficção.
O desafio de um romance histórico é o de encontrar o equilíbrio entre a narrativa ficcional dinâmica e a contextualização histórica, capaz de recriar o ambiente de época sem retirar fulgor à acção. Quem exagera nos factos, datas, nomes, arrisca-se a um resultado final confuso e pouco atractivo. Carlos Querido semeia ingredientes para um romance surpreendente e mostra grande um conhecimento da época que retrata. Existe um trabalho de investigação cuidado, mas ficamos com a sensação de que o autor não resiste à tentação de nos brindar com a investigação, sacrificando com isso a dinâmica do romance. O que deixa um certo amargo de boca, uma vez que a fluidez de escrita e a trama das primeiras páginas indiciavam estarmos na presença de um romance histórico excepcional.
2 Commentários
Caro João Bernardo Soares
Li a sua crítica que me merece todo o respeito.
A incorruptibilidade do corpo de D. João II, volvidos quatro anos sobre a sua morte, conferiu-lhe aura de santo, tendo chegado a ser venerado pelo povo de Lisboa.
Camilo Castelo Branco foi o primeiro (nos tempos modernos) a levantar a suspeição de envenenamento (Narcóticos, Volume 1, pág. 40). Como suporte científico, apresentou um parecer clínico, subscrito por José Carlos Lopes, médico e professor. Também Oliveira Martins (Príncipe Perfeito) manifestou a mesma opinião, apoiada no parecer do professor Manuel Bento. Finalmente, Anselmo Braamcamp Freire (Crítica e História) defende que D. João II foi envenenado, atribuindo a autoria a D. Manuel e à rainha D. Leonor. Contra a corrente, em 1922 Ricardo Jorge publica “O Óbito de D. João II”, onde conclui que D. João II “morreu de uremia motivada por nefrite crónica”.
É verdade que o narrador vai desfiando várias histórias, numa memória dispersa que o próprio assume como caótica. Mas isso não o afasta da procura da solução do enigma. Essa solução é-lhe sugerida pelo seu alter ego – o frade franciscano que aporta à ilha -, coincidindo com aquela que merece mais acolhimento na moderna historiografia.
Um abraço.
Carlos Querido
Caro Carlos,
Muito obrigado pelo seu comentário. Vejo-o como um profundo conhecedor da história de Portugal e gosto da sua escrita. Penso que existe um enorme potencial para atingir um público mais vasto. Tem tudo o que precisa mas deverá, na minha opinião, abdicar de alguns pormenores e dar um fio condutor à trama. Não sei qual o seu objetivo mas como escreve tão bem, gostava de ver os seus livros nas bocas do mundo, até porque somos da mesma terra!
Encorajo-o vivamente a continuar.
Grande bem-haja para quem, não sendo do mundo das letras, é um estudioso da história e tem a coragem de escrever romances.