Em 2005, María del Rosario Endrinal Petit, uma sem-abrigo, foi queimada viva no interior de um ATM em Barcelona por um gangue de adolescentes que, supostamente, teria descoberto na laranja mecânica de Kubrick e nos videojogos violentos um modo de vida, tendo durante meses a fio atacado sem qualquer remorso pessoas entregues às ruas.
Partindo desta notícia, já entretanto esquecida por outras que se adiantaram no tempo e no índice de violência, o holandês Herman Koch, produtor de televisão e escritor, publicou em 2009 “O Jantar” (Alfaguara, 2015), livro que se viria a tornar um bestseller mundial publicado em 40 países e com vendas superiores a 700000 exemplares, levando para casa o Prémio Publieksprijs de 2009.
A história tem como base geográfica um restaurante extremamente refinado, um daqueles lugares para o qual é necessário ligar com três meses – provavelmente mais – de antecedência para conseguir uma reserva para, depois, olhar no prato um vazio descomunal com alguma comida no meio.
À volta da mesa irão estar sentadas quatro pessoas, dois pares de casais: Serge Lohman, uma daquelas pessoas que tem sempre lugar em qualquer restaurante, o mais que provável futuro primeiro-ministro holandês; Babette, mulher de Serge, uma Barbie que fala pouco mas brilha como um pirilampo na noite; Paul, irmão de Serge, que assumirá o papel de narrador fazendo uso de muita ironia e sarcasmo; Claire – Marie Claire no BI -, mulher de Paul, que sabe como ninguém vestir-se a preceito para cada tipo de ocasião.
Para Paul o jantar tem tudo para correr mal, ele que vê no irmão um eterno saloio, «um parolo abrutalhado obrigado a retirar-se da mesa por causa dos peidos.» Paul imagina que tudo poderia ser diferente se, umas horas antes, tivesse permanecido no piso térreo da casa, em vez de ter subido ao quarto do filho Michel para presenciar um acontecimento que iria abalar todas as suas fundações.
O livro evoca, de certa forma, “Festen”, o filme de Thomas Vinterberg em que uma família se reunia à volta de uma mesa e onde, desde antes da tomada do aperitivo, se pressentia uma iminente tragédia. No caso de “O Jantar”, livro onde os capítulos se dividem em momentos gastronómicos – aperitivo, entradas, prato principal, sobremesa e digestivo -, a tensão crescente entre os casais encaminha-nos para um final dramático, inesperado e que deixará o leitor com um sorriso rasgado – e bem negro – nos lábios.
Radiografia do mal à escala pessoal e familiar, “O Jantar” surpreende o leitor pela forma como revoluciona a ética e a moral das personagens, que, um pouco ao estilo das Crónicas do Gelo e do Fogo de George R. R. Martin, nos farão olhá-las de ângulos diferentes à medida que os pratos vão sendo levantados. E que deixa, entre muitas outras, uma questão deveras – e sempre – pertinente: qual a dívida que os pais têm em relação aos filhos, e quanto do carácter destes é herdado dos pais? Um livro imperdível que nos mostra um mundo feito de aparências que, ao mínimo suspiro, cai como um castelo de cartas. Pelo menos para alguns.
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