Fruto do acaso e no meio de um livro antigo, eis que é descoberto um envelope cujo interior revela «um bilhete batido à máquina em papel almaço amarelado e puído». Assim começa “O Irmão Alemão” (Companhia das Letras, 2015), uma obra reflexiva de Chico Buarque que simboliza o regresso do brasileiro à autoria de um livro depois de “Leite Derramado”, editado em 2009.
Antes de casar com Maria Amélia, mãe de Chico Buarque, Sérgio Buarque de Hollanda, pai de Chico, viveu em Berlim nos fervorosos anos de 1929 e 1930 enquanto correspondente da publicação Jornal, órgão dos Diários Associados, conhecendo uma alemã. Desse relacionamento nasceu um meio-irmão, até há pouco desconhecido do cantor brasileiro.
A criança ficou registada com o nome de Sérgio e, apenas, o apelido de Anne Margerithe Ernst, sua mãe. Depois de regressar ao Brasil, Sérgio Buarque de Hollanda só voltou a ter notícias do filho em plena Segunda Guerra Mundial, no seguimento de um pedido de confirmação de que o pequeno Sérgio não tinha sangue judeu, por forma a proteger a criança da ameaça nazi.
Esta realidade apenas chegou aos ouvidos do autor de canções como “Construção” ou “Geni e o Zepelin” no final da década de 1960, que depois tentou encontrar o meio-irmão sem nunca o ter conhecido. A angústia por aquele que terá sido o destino de Sérgio Ernst (que construiu carreira como jornalista e cantor na ex-RDA, vindo a falecer em 1981) agudizou-se no âmago de Chico Buarque ao ler “Austerlitz”, de W.G. Sebald e “Paris, a Festa Continuou”, de Alan Riding. No entanto, somente cinco décadas passadas, decidiu transpôr o assunto para o formato de livro, corria o ano de 2013.
Para tal, realizou uma pesquisa exaustiva sobre o passado do seu meio-irmão, para a qual contou com a ajuda dos historiadores brasileiros Sidney Chalbould e João Klug, assim como do museólogo germânico Dieter Lang.
Fruto de uma investigação digna de um verdadeiro romance policial, “O Irmão Alemão”, não sendo um relato histórico, traça – ou tenta – um pouco da vida de Sérgio, o alemão, e reproduz, ficcionalmente, descobertas surpreendentes fazendo uso da realidade como fonte da própria ficção.
As páginas dão eco a uma narrativa que se move dentro de uma tensão constante – e desafiante -, entre o que realmente aconteceu, o que, eventualmente, terá acontecido e o deleite da pura imaginação. Além disso, Chico Buarque parece também tentar arrebatar o respeito pela memória do seu pai, pela sua vida (escondida), e essa dinâmica leva o leitor a viajar entre uma Berlim separada por inúmeras décadas, um Brasil entre a ditadura e a liberdade e vários sublinhados do Holocausto.
Seja qual for a contextualização, “O Irmão Alemão” percorre vários labirintos temporais e pessoais, fantasmas e visões, tendo sempre como objectivo (por vezes, lírico) a busca pela verdade histórica e afectiva que tem, na imensa biblioteca do pai de Chico, a maior das referências, inspirações e turbilhões criativos. Pois, no fundo, os livros são a base de si mesmos.
O Irmão Alemão é a primeira obra a ser editada pela Companhia das Letras em Portugal, numa iniciativa conjunta com o grupo editorial Penguin Random House, de que faz parte desde 2011.
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