O inesperado aconteceu ao cientista Marcos Telles: num e-mail breve, oficial e neutro, recebe a notícia da publicação do seu artigo sobre a curvatura de nanopartículas na Review of Modern Physics. Apesar de ter superado mais um desafio da sua carreira, a verdadeira preocupação de Marcos está centrada no auto-retrato informal que tem de escrever para se apresentar aos leitores. Longe de ser um currículo académico, o pequeno texto é colocado antes do texto teórico e, todos os olhos – mesmo os dos menos curiosos -, lêem os detalhes pessoais escolhidos por cada autor. A preocupação começa, bem aos poucos, a ganhar forma na cabeça do cientista: não há forma de começar o texto, de escolher um detalhe para enumerar alguns momentos-chave da sua vida. É a partir desta premissa que começa a viagem de “Na Presença de Um Palhaço” (Elsinore, 2015), escrito pelo reconhecido Andrés Barba. “Quem sou eu?” é a eterna questão que ganha força ao longo das páginas.
Para conseguir esclarecer os últimos anos, Marcos começa a recordar-se de todos os detalhes que o marcaram fatalmente. Incrível é a capacidade do ser humano em enumerar todos os defeitos e comportamentos pouco exemplares de todos os que o rodeiam, tal como o cientista faz com os pais e a mulher Nuria – a força parece estar dentro do mais negro do ser humano. Mas, como em todas as histórias, há sempre o outro lado da moeda. Se, por um lado, os mais próximos têm sempre um defeito a ser apontado – conhecimento adquirido graças à intimidade –, também o protagonista os tem. Ao escolher não colocar o nome da assistente Marta no artigo da revista especializada, Marcos opta pelo individualismo quando a glória do seu trabalho se deve, também, à inteligência da sua assistente. “Na Presença de um Palhaço” dá a conhecer uma nova geração em época de austeridade e de limites forçados: vivem os melhores e sobrevivem os restantes. Num país despedaçado, não há tempo para reflexão.
Ao tentar preparar-se para escrever a sua pequena auto-biografia, o seu cunhado Abel regressa a Espanha, com intenções de se desfazer da casa da sua falecida sogra e com vontade de cortar qualquer tipo de raiz com a sua terra natal, isto depois de uma carreira de sucesso como um comediante célebre e explorado por todas as câmaras de televisão. Célebre no passado por ambicionar desmascarar todas as ratoeiras colocadas pelos políticos espanhóis ao povo, vai provar o veneno de ver o seu talento a ser observado por milhões de pessoas. E é neste caos e nas conversas com Abel que o angustiado Marcos Telles encontra um ponto de refúgio para começar a escrever o essencial auto-retrato.
A acidez de todo o livro está nos pormenores: na desorientação do ser humano, na ausência de valores e nas personagens que surgem ao longo da narrativa. O romance de Andrés Barba é, provavelmente, um dos retratos mais fiéis da rua de qualquer leitor, das inconstantes emoções que se atravessam no seu estado de espírito. São as pequenas inquietações que podem destabilizar a noção de uma vida perfeita, basta para isso ser colocado o desafio de um simples auto-retrato nas mãos. Como começar a escrever? Como limpar a cabeça do passado?
Para além do enredo bem construído, louva-se também o trabalho de edição da Elsinore. Uma capa suave e particularmente bela – que atrai qualquer olhar à primeira vista – e a referência, no final da obra, ao trabalho dos tradutores e do ilustrador, são motivos para deliciar todos os leitores curiosos. Que venham mais obras desta chancela da 20|20.
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