O cenário de crise em Portugal está, infelizmente, envolvido numa dinâmica de eterno retorno. Ciclicamente, somos arrastados para um profundo estado de apatia no que toca ao desenvolvimento económico, social e pessoal.
Hoje, a profunda depressão que a sociedade portuguesa atravessa é como um dilacerante sentimento de déjà vu. O desemprego teima em manter-se elevado (ainda que alguns tentem desmenti-lo com base em subterfúgios envoltos de características pontuais ou sazonais), a confiança está no limiar do desespero e, uma das soluções encontradas por milhares, é a emigração.
É esse um dos paralelismos que encontramos em “Montedor” (Quetzal, 2014), o primeiro romance de J. Rentes de Carvalho, um livro que nos apresenta um anónimo personagem que, na distante década de 1960, sentia na pele a desesperança de muitas famílias portuguesas que, depois de muita luta, não encontra uma saída, um rasgo de futuro.
A solução passa por sonhar, por não desistir de um qualquer objetivo mas que, ainda assim, se desmorona com o passar do tempo. Ao viver uma vida onde a frustração é apenas erradicada (e a muito esforço) através de laivos de uma irrealidade momentânea, o presente pode ser sinónimo de uma morte lenta, de um impasse que corrói a alma e pode levar a quebrar fronteiras morais.
Ainda que através de uma (des)confortável lupa, “Montedor” reflete também uma das fases da vida de Rentes de Carvalho, quando foi obrigado a sair do país por questões políticas e que o tornou em um cidadão do mundo ao palmilhar as Américas passando pelo Rio de Janeiro, São Paulo e Nova Iorque, como também alguns canto da Europa como Paris ou Amesterdão – esta última cidade que ofereceu ao homem nascido em Vila Nova de Gaia a oportunidade de se licenciar em Literatura Portuguesa, disciplina que lecionou entre 1964 e 1988.
Enquanto paira no ar um sentimento que traz à tona uma tensão constante, “Montedor” é um retrato onde o destino é adiado de forma crua e o medo está ao virar de cada canto da existência. Viver é, assim, entendido como uma luta entre o fantasma do “tentar ser” e a (triste) consciência do que se “é”.
Em uma sociedade que tem no “tacho” uma das mais tradicionais formas de sobrevivência social, o nosso personagem procura uma espécie de El Dourado. Os estudos fracassam, a tropa revela-se pouco útil e as austrálias, tão longe, não são alternativas reais. O recurso ao padre – em troca de uma franga – é sinónimo de um embaraço da desventura, uma forma de pedalar uma bicicleta que percorre um trajeto repleto de obstáculos entre o café e o local a que se ousa chamar de “casa”.
Viviam-se (tal como hoje) tempos onde a miséria de espírito é um reflexo da precariedade social de um país fechado em si mesmo sob a égide da ditadura. Ao “herói” de “Montedor” resta pouco mais do esconder-se no refúgio fugaz da felicidade, aqui entendido como o leito, bem como nas páginas de livros e jornais na esperança de antecipar o tal estado onírico que tarda.
Nas entrelinhas percebe-se também uma crítica mordaz ao hábito da Igreja que, no caso, não faz o monge. Mas talvez a salvação, ou não, passe mesmo por um matrimónio a contra gosto e a vida que mais parece a dor de um parto precoce e indevido possa endireitar por linhas tortas.
Com uma prosa direta, simples e repleta de uma portugalidade que se vive ainda fora dos grandes meios urbanos, “Montedor” é um livro fabuloso e a sua leitura é obrigatória.
Galardoado recentemente com os prémios APE (Associação Portuguesa de Escritores) para a Escrita Biográfica e Crónica, Rentes de Carvalho é, sem dúvida, um dos autores mais emblemáticos de língua portuguesa. Esta edição da Quetzal reflete esse estatuto e dimensão.
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