Esta “História dentro de um livro” (Edições Oz, 2015), de Rafaela Gregório, é um livro infantil cheio de boas intenções. Pegando no típico conto do cavaleiro com uma missão, a intenção aqui é mostrar que a não-conformidade com os papéis típicos e as expectativas limitadoras é algo que deve ser cultivado. Porém, depressa cai na armadilha para a qual pretende advertir. O que é uma pena, porque a literatura infantil é formativa e uma oportunidade perdida é sempre algo a lamentar.
A história é simples: a princesa é raptada pelo bruxo mau, o rei encarrega o herói improvável de resgatar a sua preciosa filha e o dito herói salva o dia e descobre o seu lugar no mundo. O percurso do herói leva-o a perceber que, afinal, não tem de ser um cavaleiro como os outros e ter os mesmos talentos que todos os cavaleiros do reino têm porque, no fundo, o seu sucesso na missão é a prova de que seguirmos um caminho diferente não implica que seja o caminho errado – e de que a individualidade seja algo que deve ser acarinhado e encorajado. Mas se a meta é mais do que válida, o percurso do livro deixa algo a desejar. A prosa rimada torna-se enfadonha e a quantidade de valores ultrapassados retira ao livro aquilo que poderia ter de melhor: a celebração do indivíduo que percebe que ser diferente não é negativo, muito pelo contrário.
Escabelo é um jovem cavaleiro que não é valente ou galante, e que tem o defeito atroz de ser um preguiçoso consumado. Porém, a missão de que é incumbido revela-nos, a nós e ao próprio Escabelo, que a preguiça é provocada pela frustração de não se enquadrar nas convenções rígidas do mundo em que vive, que é um baixar de braços perante a não-aceitação por parte dos outros. Uma vez ultrapassada a insegurança, o jovem protagonista assume a sua criatividade, diferença e especificidade, obtendo assim o prémio da aprovação dos outros e uma vida feliz, sendo tal e qual como é: sem máscaras. Uma moral da história positiva e sempre pertinente, sem dúvida, mas acompanhada de valores bacocos que já convinha erradicar. Um herói do sexo masculino não devia implicar uma princesa vítima e passiva cujos únicos atributos são a beleza e um isolado lampejo de quase-inteligência, que apenas tem lugar na história para validar o protagonista. Será aceitável continuar a impor modelos decrépitos de homens ao leme a meninos e a meninas que deveriam aprender, desde bem pequenos, a igualdade de género? O jovem Escabelo salva e pede a mão da princesa, o bruxo rapta-a e prende-a e o rei limita-se a decidir o futuro dela sem lhe pedir opinião, o que redunda noutra forma de cativeiro.
Poderão revirar os olhos e dizer: “É só um livro para crianças, tenham lá calma com o andor.” Mas um livro para crianças tem muito poder e, já dizia o tio do Homem-Aranha por outras palavras, quanto maior o poder, maior a responsabilidade. Pontos pela defesa da individualidade e de valores como a compaixão e a perseverança, um cartão amarelo ou dois pela perpetuação de papéis ultrapassados e nocivos.
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