Um romance sobre a perda dificilmente será uma leitura isenta de angústias, mas Filipe Homem Fonseca eleva a fasquia com o seu “Há Sempre Tempo Para Mais Nada” (Quetzal, 2015) de uma forma que só pode ser classificada como implacável. Esta história de um viúvo em rota de colisão com uma realidade também ela viúva de sentido e propósito não é fácil de digerir; é, sim, um romance desesperançado que não faz prisioneiros e que, por isso mesmo, se torna libertador ou, pelo menos, catártico. Não há aqui uma obrigação auto-imposta de salvar a honra do convento de São Final Feliz, que se vê em tantos autores, nem de zelar pelo conforto emocional do leitor com uma salvação mal-amanhada para que tudo fique bem.
Bastará este resumo para percebermos que, enquanto leitores, não seremos tratados como crianças. Aprecie-se ou não o estilo de Filipe Homem Fonseca, não se pode acusá-lo de querer manter as hostes leitoras sedadas e contentes com historietas cor-de-rosa. De facto, a escrita é uma constante desmistificação dos placebos da língua e da sabedoria popular, com a repetição persistente de adágios que todos usamos para minimizar ou suportar a falta de sentido da tragédia, da desgraça ou simplesmente dos amargos de boca que a vida é tão pródiga a oferecer. A vida não é um mar de rosas, como diz o povo e bem, e Filipe Homem Fonseca parece determinado a mostrar-nos isso mesmo em todas as páginas, o que acaba por ser também um exercício de “bater no ceguinho”.
Por mais que um leitor aprecie não ser infantilizado ou tratado nas palminhas, é fácil resvalar para a crueldade e ao autor foge-lhe frequentemente o pé para a crueza, por mais atenuada que esteja pelos falsos cuidados paliativos da escrita quase humorística. Os mantras populares e os toques de humor são sempre sorrisos amargos neste romance, limitando-se a reforçar o estado de desespero do protagonista e do mundo e a sua completa impotência perante os caprichos do destino. Por mais que nos iludamos com palavras que não passam de mantinhas ou do peluche preferido a que nos agarrávamos em crianças, a realidade é o que é: tão bela quanto cruel.
Acompanhar o trajecto deste viúvo não é tarefa fácil para o leitor, mas se pensarmos bem, porque há de o autor facilitar-nos a vida quando ela não é pêra doce? Todo o romance funciona um pouco como olhar para debaixo da cama ou para dentro do roupeiro à procura de monstros, sugere-nos que encaremos de frente os papões da tragédia, da solidão e da desesperança. Porém, não nos encoraja com uma promessa de vitória e felicidade no final ou com a cenoura do “vai ficar tudo bem”. O que não significa que não haja beleza neste romance, porque o há e com fartura. A viagem do viúvo até à Índia, a vida de bairro lisboeta com os seus episódios e figurantes castiços, as recordações de infância do protagonista, a tragédia pessoal que o empurra ribanceira abaixo e as ilusões em que se deixa cair são de facto belas e descritas com doses bem medidas de ternura e acidez. E se o facto de a humanidade se encaminhar para a extinção nos desanima, se o sentido de humor retorcido da vida nos vira o sorriso ao contrário, o romance em si não é uma desilusão, mas uma prosa contundente que tanto nos atira pedras como flores.
Há sempre tempo para um romance assim, no fundo, se estivermos virados para uma história tão bonita quanto implacável; se estivermos dispostos a tirar as palas dos olhos e a encarar a vida tal como ela é, sem falsas promessas de felizes para sempre ou ficaram todos bem, apesar de tudo. Filipe Homem Fonseca escreveu um romance realista ou pessimista, dependendo da perspectiva do leitor de copo meio-cheio ou meio-vazio, e não esteve com paninhos quentes. Lê-lo não chega a ser um acto de coragem, mas aconselha-se um estômago com alguma resistência à amargura.
1 Commentário
Não deveria haver, ao menos, 1 citação do livro para me mostrar se a linguagem vale alguma coisa? Tudo o que li foi blah-blah-blah escuridão blah-blah-blah pesar blah-blah-blah dor blah-blah-blah-blah-blah-blah coragem…
Elogiar um escritor por ser cru e negro e pessimista e impiedoso (sempre com o subentendido de que somos especiais – corajosos, como tão bem diz – por gabarmos essas qualidades tão impopulares) já se tornou um cliché da resenha.
Não tenho nada contra isso – já terei lido livros mais pesados, sem dúvida – mas o que me interessa mesmo é saber se o livro está bem escrito, se tem boas metáforas, se o vocabulário é variado e não o de um afásico, se as frases estão limadas ou foram empilhadas ao trouxe-mouxe sem atenção ao estilo. E não descobri nada disso a ler esta resenha. Acho que este livro ficará para outra vez.