Se houvesse uma lei que obrigasse a colocar um poster na parede da redacção do Deus Me Livro, um pouco como os adolescentes fazem alegremente nos seus quartos com folhas arrancadas à Bravo e a outras publicações do género, uma das escolhas possíveis seria, sem qualquer dúvida, Holly Black. Não pelo facto de a autora ter muitas curvas para mostrar ou uma beleza para dar e vender, mas antes por ser uma das mais imaginativas, bem-humoradas e interessantes autoras de livros com queda para o fantástico.
Aqueles que não conhecem a autora poderão começar a viagem pelo ilustrado quinteto denominado “As Crónicas de Spiderwick”, ganhando balanço para subirem à montanha conhecida como “A prova do ferro” – uma das grandes edições com selo nacional neste ano de 2014. Depois disso, no regresso, poderão terminar a viagem com um grande repasto na “Gata branca” (Editorial Presença, 2014), título de 2010 que conheceu edição nacional no ano que acaba de findar.
Cassel Sharpe é um jovem de dezassete anos que gostaria de ter uma vida normal. O que, para alguém que nasceu numa família com uma forte tradição em manipulação de maldições que agem sobre o destino, o corpo e a memória alheios, não se afigura nada fácil. O seu avô, um manipulador da morte, anda sempre com as pontas dos dedos escuras, isto porque «todas as maldições deixam uma marca a quem as pratica, mas as maldições da morte matam-nos aos poucos.»
Cassel vive assombrado pela ideia de, também ele, pode vir a revelar poderes maléficos, algo que por vezes passa para segundo plano quando a sua vida é posta em risco por consecutivos actos de sonambulismo, um deles fazendo-o passear perigosamente pelos telhados do colégio interno que frequenta.
Com a mãe na prisão, Cassel e o avô decidem limpar a antiga casa de família, que esconde camadas de objectos e recordações. Também ela manipuladora, foi a mãe de Cassel a ensinar-lhe a regra básica da vigarice: «Se vamos vigarizar alguém (seja com magia e com esperteza, seja apenas com a esperteza), temos de conhecer o otário melhor do que ele se conhece a si próprio.» Uma regra que Cassel vai aplicando na perfeição, aumentando o seu pé de meio com a gestão de uma rede de apostas clandestina no colégio – onde se pode apostar na vida amorosa dos professores ou tentar adivinhar quem conseguirá apanhar o rato espertalhão que passeia pelo colégio.
Um pouco à semelhança de Civil War – uma saga passado no universo Marvel -, o governo impôs a obrigatoriedade de testes de modo a ver quem é hiperbatigâmico – manipulador de emoções -, recrutando elementos para o contra-terrorismo e outros serviços e missões duvidosas.
Para além de toda a crise familiar, Cassel vive assombrado com a ideia de ter morto a jovem Lila, uma manipuladora de sonhos que, basicamente, era a sua única amiga – ou qualquer coisa lá perto. Lila era da família Zacharov, uma das famílias manipuladoras dominantes, pelo que se descobrirem que Cassel teve algo que ver com o seu desaparecimento os sarilhos serão grandes. Foram os irmãos de Cassel que o encontraram junto ao corpo de Lila, com as mãos ensaguentadas e um sorriso estranho nos lábios.
Enquanto arruma a casa gigantesca com o seu avô, Cassel trava amizade com uma gata branca, de omoplatas salientes, o pelo sujo de lama e uma ferocidade latente, decidindo adoptá-la impelido por um sonho recorrente: «Tinha estado a sonhar com um gato branco. O animal havia-se debruçado sobre mim e inspirava profundamente como se quisesse sugar-me o ar dos pulmões, mas, em vez disso, mordera-me a língua.» Supostamente terá sido por causa do gato que Cassel terá acabado no telhado, enfrentando agora o risco de suspensão de uma escola que está entre a excelência e a delinquência.
Ao arrumar anos e anos de recordações e revelações, Cassel decide descobrir toda a verdade sobre Lila e o que realmente aconteceu na noite em que acordou com as mãos ensanguentadas. Mesmo que, para isso, tenha de enfrentar a sua própria família e o clã Zacharov, dirigindo-se a passos largos para o sempre perigoso território dos segredos familiares.
Com uma grande mestria, Holly Black escreveu uma história de magia negra sobre a auto-descoberta e a passagem à idade adulta, em mais um livro que ficará a matar na estante reservada aos livros de fantasia.
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