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Eu Confesso, Tinta da China, Jaume Cabré
Crítica, Mil Folhas 1

“Eu Confesso” | Jaume Cabré

Por Pedro Miguel Silva · Em 03/07/2015

“Até ontem à noite, passeando pelas ruas molhadas de Vallcarca, nunca tinha percebido que tinha sido um erro imperdoável nascer naquela família.” É desta forma que Adrià Ardèvol, agora com cerca de 60 anos, se dirige como narrador de uma história de vida – a sua – a um corpo ausente, presente numa sala através de um auto-retrato, numa memória escrita que não pretende esconder mentiras, falhanços ou enganos: “Não te fies em mim. Sei que neste génerto tão propenso à mentira, como é o das memórias escritas para um único leitor, tenderei sempre a cair de quatro partas no chão, como os gatos: mas vou fazer um esforço para não inventar muito. Tudo se passou assim e ainda pior.”

Bastará ler a primeira página para que o leitor se sinta, desde logo, enfeitiçado por “Eu Confesso” (Tinta da China, 2015), o livro de Jaume Cabré lançado em 2011 que conhece, finalmente, edição portuguesa, arriscando-se a ser considerado por muito boa gente como o melhor livro do ano quando chegar o momento de fazer contas de multiplicar, dividir, subtrair e somar.

O que dizer de um livro que tem tudo lá dentro, como se tivesse conseguido condensar, em pouco mais de setecentas páginas, todo o mal que o Homem tem feito durante vários séculos, sem com isso arruinar o prazer da descoberta do leitor? A tentação para cometer o sacrilégio do spoiler é grande, por isso aqui fica o conselho: se ainda não leu esta obra não avance mais no texto, corra até à próxima livraria e compre o livro de olhos fechados.

Não se trata, porém, de um romance fácil: o narrador tanto fala de si na primeira como na terceira pessoa, por vezes na mesma frase, e muitas vezes saltamos décadas – séculos – sem qualquer aviso, numa memória literária em que “tudo começou há mais de quinhentos anos, quando aquele homem atormentado decidiu solicitar a entrada para o mosteiro de Sant Pere del Burgal.”

Criado numa Barcelona franquista por pais ausentes, que trancaram o carinho e o amor nas gavetas derretendo depois as chaves que as abririam, Adrià cresceu num apartamento carregado de sombras, sendo o seu futuro disputado pela progenitura numa luta ganha palmo a palmo: o pai, um negociante em antiguidades, pretendia transformá-lo num humanista poliglota; quanto à mãe, vê no filho a centelha de um violinista virtuoso, contratando os melhores professores para o transformarem num músico capaz de encantar o mundo levando-o às cordas. Ele que quer ser, somente, um historiador das ideias e da cultura.

Aos 8 anos Adrià tem, no Xerife Carson e em Águia Negra – um chefe arapaho –, os seus grandes companheiros de conversa e de aventura, escondendo-se atrás do sofá ou noutros lugares insuspeitos para ouvir conversas alheias enquanto vai praticando a aprendizagem da língua francesa – há um tique que faz com que o seu pé quase o denuncie, e que apenas passa quando se dedica a traduzir para francês o que vai ouvindo em secretismo.

É também aos 8 anos de idade que conhece  Bernat, “um rapaz mais alto do que eu e já com um bocadinho de sombra no bigode e alguns pêlos nas pernas. Bom, muito mais alto do que eu.” E, diga-se, muito melhor violinista que Adrià, ainda que se esqueça de adicionar às brilhantes execuções um pouco mais de alma.

Eu Confesso, Tinta da China, Jaume CabréE será exactamente no violino, mais propriamente num violino excepcional que o pai de Adrià guarda num cofre-forte, que Jaume Cabré irá tecer uma imensa teia literária, que leva o leitor numa incrível e trágica viagem pelo rasto que o mal deixa atrás de si, da Inquisição ao nazismo, de Barcelona ao Vaticano, da própria génese que sustenta as melhores e mais antigas amizades.

Pelo meio há de tudo um pouco: disputas familiares, negócios de sangue, egoísmo e incompreensão, narcisismo e rejeição, mas também música, literatura e amor, ainda que este último pareça sempre condenado a ser vivido no silêncio ou na já alcançável posteridade. E que guarda como um tesouro um final assombroso, para o qual dificilmente o leitor se conseguirá preparar. Jaume Cabré não escreveu um romance. Escreveu sim uma obra-prima, um daqueles livros indecifráveis que ficarão com o leitor no compartimento secreto da sua biblioteca pessoal e ao qual voltará, certamente, para mais do que uma releitura. “…Onde tivesse de haver terror, o terror teria de ser infinito. E onde tivesse de haver crueldade, a crueldade teria de ser absoluta, porque era a História que agora tomava a palavra.” Simplesmente magnífico.

Eu ConfessoJaume CabréTinta da China

Pedro Miguel Silva

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1 Commentário

  • Mirella Gadelha comentou: 07/05/2016 at 23:20

    Um dos melhores livros que li em toda a vida.

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