“Até ontem à noite, passeando pelas ruas molhadas de Vallcarca, nunca tinha percebido que tinha sido um erro imperdoável nascer naquela família.” É desta forma que Adrià Ardèvol, agora com cerca de 60 anos, se dirige como narrador de uma história de vida – a sua – a um corpo ausente, presente numa sala através de um auto-retrato, numa memória escrita que não pretende esconder mentiras, falhanços ou enganos: “Não te fies em mim. Sei que neste génerto tão propenso à mentira, como é o das memórias escritas para um único leitor, tenderei sempre a cair de quatro partas no chão, como os gatos: mas vou fazer um esforço para não inventar muito. Tudo se passou assim e ainda pior.”
Bastará ler a primeira página para que o leitor se sinta, desde logo, enfeitiçado por “Eu Confesso” (Tinta da China, 2015), o livro de Jaume Cabré lançado em 2011 que conhece, finalmente, edição portuguesa, arriscando-se a ser considerado por muito boa gente como o melhor livro do ano quando chegar o momento de fazer contas de multiplicar, dividir, subtrair e somar.
O que dizer de um livro que tem tudo lá dentro, como se tivesse conseguido condensar, em pouco mais de setecentas páginas, todo o mal que o Homem tem feito durante vários séculos, sem com isso arruinar o prazer da descoberta do leitor? A tentação para cometer o sacrilégio do spoiler é grande, por isso aqui fica o conselho: se ainda não leu esta obra não avance mais no texto, corra até à próxima livraria e compre o livro de olhos fechados.
Não se trata, porém, de um romance fácil: o narrador tanto fala de si na primeira como na terceira pessoa, por vezes na mesma frase, e muitas vezes saltamos décadas – séculos – sem qualquer aviso, numa memória literária em que “tudo começou há mais de quinhentos anos, quando aquele homem atormentado decidiu solicitar a entrada para o mosteiro de Sant Pere del Burgal.”
Criado numa Barcelona franquista por pais ausentes, que trancaram o carinho e o amor nas gavetas derretendo depois as chaves que as abririam, Adrià cresceu num apartamento carregado de sombras, sendo o seu futuro disputado pela progenitura numa luta ganha palmo a palmo: o pai, um negociante em antiguidades, pretendia transformá-lo num humanista poliglota; quanto à mãe, vê no filho a centelha de um violinista virtuoso, contratando os melhores professores para o transformarem num músico capaz de encantar o mundo levando-o às cordas. Ele que quer ser, somente, um historiador das ideias e da cultura.
Aos 8 anos Adrià tem, no Xerife Carson e em Águia Negra – um chefe arapaho –, os seus grandes companheiros de conversa e de aventura, escondendo-se atrás do sofá ou noutros lugares insuspeitos para ouvir conversas alheias enquanto vai praticando a aprendizagem da língua francesa – há um tique que faz com que o seu pé quase o denuncie, e que apenas passa quando se dedica a traduzir para francês o que vai ouvindo em secretismo.
É também aos 8 anos de idade que conhece Bernat, “um rapaz mais alto do que eu e já com um bocadinho de sombra no bigode e alguns pêlos nas pernas. Bom, muito mais alto do que eu.” E, diga-se, muito melhor violinista que Adrià, ainda que se esqueça de adicionar às brilhantes execuções um pouco mais de alma.
E será exactamente no violino, mais propriamente num violino excepcional que o pai de Adrià guarda num cofre-forte, que Jaume Cabré irá tecer uma imensa teia literária, que leva o leitor numa incrível e trágica viagem pelo rasto que o mal deixa atrás de si, da Inquisição ao nazismo, de Barcelona ao Vaticano, da própria génese que sustenta as melhores e mais antigas amizades.
Pelo meio há de tudo um pouco: disputas familiares, negócios de sangue, egoísmo e incompreensão, narcisismo e rejeição, mas também música, literatura e amor, ainda que este último pareça sempre condenado a ser vivido no silêncio ou na já alcançável posteridade. E que guarda como um tesouro um final assombroso, para o qual dificilmente o leitor se conseguirá preparar. Jaume Cabré não escreveu um romance. Escreveu sim uma obra-prima, um daqueles livros indecifráveis que ficarão com o leitor no compartimento secreto da sua biblioteca pessoal e ao qual voltará, certamente, para mais do que uma releitura. “…Onde tivesse de haver terror, o terror teria de ser infinito. E onde tivesse de haver crueldade, a crueldade teria de ser absoluta, porque era a História que agora tomava a palavra.” Simplesmente magnífico.
1 Commentário
Um dos melhores livros que li em toda a vida.