Ler António Cabrita é, derivando do provérbio popular, ter um olho em Portugal e o outro em Moçambique, os dois países nos quais o autor tem alternado a sua vida. “Éter” (Abysmo, 2015), livro que reúne oito contos do escritor português, revela a língua portuguesa com um toque de perfume e magia africana, para além das muitas atribulações vividas no rectângulo europeu.
O autor do magistral “A Maldição de Ondina” brinca de forma despreocupada com géneros literários, criando narradores que tanto bebem da biografia de António Cabrita como se inspiram na memória colectiva daqueles que o rodeiam.
Faça-se uma curta viagem aos quatro contos inaugurais: «Ainda não me saíram da pele os teus quatro tiros de caçadeira», começa assim Coração quase branco, o primeiro conto que parte de uma carta de um ornitólogo a um alfarrabista para, depois, atravessar os abusos da mente, os infernos individuais e a tentação do fim que nos espera a todos; em Chinas e matraquilhos, narrado a duas vozes, levanta-se uma questão pertinente – quando é que os chineses páram de nascer? -, num conto sobre uma reunião familiar falhada (?) que, à moda de Pulp Fiction, elege um morto para herói; Kamasutra para rouxinóis mostra como muitas histórias nascem em artigos de jornal, num conto que faz uma radiografia de meio corpo ao processo criativo e ao nascimento da escrita; O beijo no arame é uma curiosa história sobre a descoberta da sexualidade, começando pelo formular de um beijo que se transforma em tabefe.
O resto do livro revela os habituais sinais da escrita envolvente de António Cabrita, feita de melancolia, drama e um muito particular sentido de humor, terminando com uma interrogação que aproxima a filosofia da arte doméstica: «Há horas – em quantas horas se defenestra a eternidade? – que procuro recordar-me como se fecha o programa nº 5, nas máquinas de lavar loiça.» Estranhamente encantatório.
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