Tendo como territórios de eleição o Brasil e os Açores, a narrativa de “Até para o Ano em Jerusalém” (Companhia das Ilhas, 2015), de Maria da Conceição Caleiro, resulta de uma visão muito própria do conceito de vitimização, de uma sensação de impotência, independentemente do seu ângulo ou perspectiva.
Mas é, também, uma exploração das fronteiras (e dos limites) do amor, da natureza desse acto, e dos extremos que resultam da incondicionalidade e, no caso, do espectro da sobrevivência que se deixa assolar por doses ambivalentes de cobardia, medo e abandono, algo que vai ao “encontro” do que a autora concebeu com a sua obra anterior, “O Cão das Ilhas”, título que lhe valeu, em 2009, o prémio PEN Clube Português para Primeira Obra publicada.
Em “Até para o Ano em Jerusalém”, a autora versa também sobre o contágio, metafórico ou não, do sangue, enquanto veículo de propagação “da” doença e do ódio antissemita, mas também de um romance cuja matemática se transfigura para algo penoso, doloroso e que tem como palco uma Jerusalém mítica, entre o real e o onírico.
No olho deste furacão lírico estão duas pessoas, um homem e uma mulher, que trazem atreladas a si uma série de questões de resolução complicada ou (im)possível. Vicente e Maria Luís conhecem-se, por um acaso, em casa de uma amiga – a narradora desta estória. Ele é especialista em História Contemporânea, é professor, está temporariamente separado e ultima a sua obra literária. Além disso, está de partida para terras de Vera Cruz, para leccionar. Ela, artista plástica, faz esculturas e adoptou o nome artístico Kowalevsky, depois de uma ocasional descoberta ao vasculhar missivas esquecidas do passado familiar. Do encontro, brota uma paixão que não acaba bem. Maria Luís é seropositiva.
Enquanto está no Brasil, Vicente conhece alguém, um colega, David, de apelido – verdadeiramente – Kowalevsky, nome de origem judaica, descendente de imigrantes refugiados do Holocausto. A coincidência, ou talvez não, leva-o a pesquisar a origem do apelido, o seu destino. A investigação, qual vertigem, leva Vicente à orla de Iossef, um refugiado polaco que zarpou de Danzing, actual Gdansk, com destino a Inglaterra mas que fez “escala” nos Açores antes de assentar amarras na América do Sul.
Mais do que letras, ideias, Maria da Conceição Caleiro inspira-se na arte de Maria Luís e cria, também ela, esculturas, imagens em forma de palavras, frases que resultam, por exemplo, no relato da destruição da Grande Sinagoga de Danzig – cidade que está no epicentro do início da Segunda Guerra Mundial -, e da venda do seu património que tinha, por destino, patrocinar a fuga ao mais cruel dos destinos.
Mestre em Literatura e Cultura Portuguesas, com experiência na área do ensino e colaboradora das revistas Ler e Egoísta e do jornal Público, Maria da Conceição Caleiro dá mais um passo no amadurecimento da sua condição de escritora. “Até para o Ano em Jerusalém” é uma obra pertinente, honesta e, acima de tudo, convincente, cujo início remete a uma Polónia reclusa de 1939 terminando no “eixo” Portugal/Brasil.
Nas mãos temos um livro que deve ser lido, absorvido, como uma reflexão sobre a memória individual, civilizacional e cultural, que se alicerça em fragmentos da História, do Holocausto e da interminável diáspora do povo judeu.
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