• Mil Folhas
  • Música Com Cabeça
  • Cine ou Sopas
deusmelivro
Crítica, Mil Folhas 1

“Arranha-Céus” | J.G. Ballard

Por Nelson Ferreira · Em 29/10/2015

Um monumento. Podíamos terminar por aqui, mas talvez fosse caso de exagero, ao jeito de um elogio fúnebre, o tipo de culto que só aos autores mortos se presta. Se nos despachássemos em apenas três linhas, era para o lado que o falecido J.G. Ballard dormia melhor. Seria, contudo, injusto para o legado do autor e o trabalho exemplar de Marta Mendonça, Rute Mota e a Elsinore, respectivamente tradutoras e chancela da editora 20/20, não descurando, também, uma merecida menção ao trabalho gráfico de Lorde Mantraste. São os responsáveis pela chegada de “Arranha-Céus” (Elsinore, 2015) ao ciclo editorial preparando-nos, assim, para a adaptação cinematográfica de Ben Wheatley.

James Graham Ballard escreve bem sem darmos por isso. Até é provável que a certo ponto achemos que escreve mal, dada a quase exclusividade funcional da sua prosa. Temos o essencial descritivo para mapearmos um micro-cosmos que, à escala do mundo, não se quer conter em tamanho. De embelezamento destacamos as comparações recorrentes, que o autor domina com mestria, regendo-se em torno de imagens fortes e memoráveis.

Se há algo de complexo em “Arranha-Céus”, é o seu cariz alegórico. O caos urbano manifesta-se na aglomeração de corpos na vertical que o mundo moderno, sobrepopulado, permite. Sendo as possibilidades temáticas infinitas, Ballard opta pela glorificação sádica das discrepâncias hierárquicas – uma espécie de estado limite do darwinismo social. A essência tribal, primitiva, é explícita. O animal humano, liberto do açaime moral, deambula entre comportamentos de dominância e subserviência.
Capa Arranha-CéusO enredo está lá, na concepção mais formulaica da construção narrativa, mas Ballard manipula-o a gosto, sem dever explicações que justifiquem actos e decisões dos personagens. Permite, assim, resultados inconclusivos para todos os destinos excepto o dos mortos. Não interessa se o mundo exterior ao prédio decorre com toda a normalidade, enquanto o seu interior magnânimo é regido por uma lei canídea: o mundo é o arranha-céus e os seus ocupantes. O exterior, de tão desinteressante que é, padronizado por profissões que conhecemos bem e normas sociais de domesticação a que também já nos acostumamos, é reduzido à insignificância.

Brilha em “Arranha-Céus” o que não está escrito. O mérito da obra tanto é de Ballard, como do convite à reflexão que implica a sua leitura. Haverá leitores defraudados com a obra, em todos os sentidos: por não ser ficção-científica; por não ser congruente o suficiente para ser uma distopia clássica; que é uma mera reinterpretação de “O Senhor das Moscas”; ou até mesmo por Ballard não masturbar o leitor como um Kundera. Posto isto, “Arranha-Céus” está confortavelmente inserido num nicho que a literatura anglófona conhece bem: o ponto de fervura que passeia pela fórmula sem que isso implique um tédio de bocejo escancarado, dando, em simultâneo, pouca margem para subestimar a inteligência do leitor.

Arranha-CéusElsinoreJ.G. Ballard

Nelson Ferreira

Pode Gostar de

  • Eu (Odeio) Adoro Livros, MariaJo Ilustrajo, Deus Me Livro, Fábula, Crítica, Mil Folhas

    “Eu (Odeio) Adoro Livros” | MariaJo Ilustrajo

  • Curtas da Estante, Deus Me Livro, Vogais, 1945 - Contagem Decrescente, Chris Wallace, Mitch Weiss, Mil Folhas

    Curtas da Estante: “1945 – Contagem Decrescente” | Chris Wallace e Mitch Weiss

  • Deus Me Livro, Crítica, Contraponto, Ainda Vamos a Tempo!, Ivone Patrão, Mil Folhas

    “Ainda Vamos a Tempo!” | Ivone Patrão

1 Commentário

  • Outubro de 2015 | Rascunhos comentou: 02/11/2015 at 11:09

    […] Arranha-céus – J.G. Ballard – Deus me Livro, As leituras do Corvo, Roda dos […]

    https://acrisalves.wordpress.com/2015/11/02/outubro-de-2015/

    Resposta
  • Deixe uma opinião Cancelar

    Siga-nos aqui

    Follow @Deus_Me_Livro
    Follow on Instagram

    Mil Folhas

    • Eu (Odeio) Adoro Livros, MariaJo Ilustrajo, Deus Me Livro, Fábula, Crítica,

      “Eu (Odeio) Adoro Livros” | MariaJo Ilustrajo

      30/05/2025
    • Curtas da Estante, Deus Me Livro, Vogais, 1945 - Contagem Decrescente, Chris Wallace, Mitch Weiss,

      Curtas da Estante: “1945 – Contagem Decrescente” | Chris Wallace e Mitch Weiss

      29/05/2025
    • Deus Me Livro, Crítica, Contraponto, Ainda Vamos a Tempo!, Ivone Patrão,

      “Ainda Vamos a Tempo!” | Ivone Patrão

      29/05/2025
    • Curtas da Estante, Deus Me Livro, Religião Sem Deus, Gradiva, Ronald Dworkin,

      Curtas da Estante: “Religião Sem Deus” | Ronald Dworkin

      29/05/2025
    • Curtas da Estante, Devir, Deus Me Livro, Hitler, Shigeru Mizuki,

      Curtas da Estante: “Hitler” | Shigeru Mizuki

      28/05/2025
    Acha o Deus Me Livro diferente? CLIQUE AQUI.

    Archives

    • May 2025
    • April 2025
    • March 2025
    • February 2025
    • January 2025
    • December 2024
    • November 2024
    • October 2024
    • September 2024
    • August 2024
    • July 2024
    • June 2024
    • May 2024
    • April 2024
    • March 2024
    • February 2024
    • January 2024
    • December 2023
    • November 2023
    • October 2023
    • September 2023
    • August 2023
    • July 2023
    • June 2023
    • May 2023
    • April 2023
    • March 2023
    • February 2023
    • January 2023
    • December 2022
    • November 2022
    • October 2022
    • September 2022
    • August 2022
    • July 2022
    • June 2022
    • May 2022
    • April 2022
    • March 2022
    • February 2022
    • January 2022
    • December 2021
    • November 2021
    • October 2021
    • September 2021
    • August 2021
    • July 2021
    • June 2021
    • May 2021
    • April 2021
    • March 2021
    • February 2021
    • January 2021
    • December 2020
    • November 2020
    • October 2020
    • September 2020
    • August 2020
    • July 2020
    • June 2020
    • May 2020
    • April 2020
    • March 2020
    • February 2020
    • January 2020
    • December 2019
    • November 2019
    • October 2019
    • September 2019
    • August 2019
    • July 2019
    • June 2019
    • May 2019
    • April 2019
    • March 2019
    • February 2019
    • January 2019
    • December 2018
    • November 2018
    • October 2018
    • September 2018
    • August 2018
    • July 2018
    • June 2018
    • May 2018
    • April 2018
    • March 2018
    • February 2018
    • January 2018
    • December 2017
    • November 2017
    • October 2017
    • September 2017
    • August 2017
    • July 2017
    • June 2017
    • May 2017
    • April 2017
    • March 2017
    • February 2017
    • January 2017
    • December 2016
    • November 2016
    • October 2016
    • September 2016
    • August 2016
    • July 2016
    • June 2016
    • May 2016
    • April 2016
    • March 2016
    • February 2016
    • January 2016
    • December 2015
    • November 2015
    • October 2015
    • September 2015
    • August 2015
    • July 2015
    • June 2015
    • May 2015
    • April 2015
    • March 2015
    • February 2015
    • January 2015
    • December 2014
    • November 2014
    • October 2014
    • September 2014
    • August 2014
    • July 2014
    • Contacto