Há cerca de um ano, chegou aos escaparates uma edição que, no leitor, terá tido o mesmo efeito surpresa provocado pelo furacão Franzen que, com “Correcções” e “Liberdade”, garantiu já o seu lugar no céu dos escritores, com vista para o Olimpo, o Purgatório e outras grandes maravilhas.
Falamos de “Deixa lá / Más novas”, da autoria de Edward St Aubyn, os dois primeiros andamentos da saga Melrose, composta de cinco livros. Saga que, recentemente, viu publicados mais dois livros num só volume: “Alguma esperança / Leite materno” (Sextante, 2014). Lá mais para a frente no calendário, a saga será concluída com “Por fim”, que terá direito a um livro por inteiro.
Fica desde já o aviso. Antes de se lançarem a “Alguma esperança / Leite materno” deverão ler primeiro “Deixa lá / Más novas”, de modo a acompanharem Patrick Melrose desde tenra idade. Caso contrário irão perder a essência e a fabricação de uma das mais fascinantes personagens da literatura moderna, um misto de charme, sarcasmo e amargura. Muita amargura.
Em “Alguma esperança“, Patrick Melrose continua preso ao fantasma e ao legado sentimental deixado pelo pai, reflectindo sobre o único conselho que este lhe terá deixado em vida: «Se tens um talento usa-o. Ou serás infeliz o resto da tia vida.» Neste terceiro romance do quinteto Melrose acompanhamos Patrick – bem como a sua luta para se manter longe do álcool e de outras substâncias mais pesadas – a uma festa que reúne a flor da aristocracia britânica, a nata dos arrivistas e a insuportável princesa Margarida. Um livro que está mais virado para o exterior de Patrick, onde St Aubyn aproveita para lançar o seu olhar mortal e muito sarcástico sobre o poder e a sua hereditariedade. Mas é também este o livro da catarse, em que Patrick partilha com alguém o facto de ter sido abusado pelo pai.
“Leite materno” é, sem dúvida, o maior dos quatro romances editados até agora – em versão portuguesa – da saga Melrose. Uma radiografia de corpo inteiro a Patrick Melrose, agora casado, pai de dois filhos e praticamente falido. Patrick regressa, provavelmente pela última vez, à casa da família no sul de França, para passar o Verão com a família. Casa que, a manter-se a vontade de Eleanor – a mãe de Patrick -, será entregue a um burlão e à sua causa pseudo-xamânica, deixando Patrick e a família reduzidos a uma quinzena anual de férias na propriedade.
Este é um livro enorme onde cabe um pouco de tudo: o caso extraconjugal de Patrick, cada vez mais melancólico e encurralado perante a ideia de passar, para os filhos, todos os seus traumas e medos; a tentação e o apelo das recaídas, e o acreditar que o dia seguinte será sempre o primeiro de uma nova vida; o lidar de Patrick com a decadência da sua mãe, alguém que nunca cuidou de si e que agora pede a sua ajuda para uma proibida eutanásia; a relação quase edipiana de Mary – a mulher de Patrick – com o filho Thomas, o substituto e a desculpa física para o seu afastamento em relação a Patrick. Mas ouvimos também a voz de Robert, o filho mais velho de Patrick, que herdou do pai o sarcasmo, a ironia e um arguto sentido de observação sobre o mundo que o cerca.
Com uma prosa no auge do refinamento e uma linguagem precisa com tanto de racional como de poético, Edward St Aubyn oferece nestes dois romances uma comédia social de proporções épicas, espirituosa e comovente, rodando em torno de uma personagem a que ninguém poderá ficar indiferente.
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