Assistimos todos, uns mais maravilhados que outros, ao esforço de passar para o mundo a imagem de um Vladimir Putin hiper-masculinizado, em tronco nu, montado a cavalo. Salta-nos à vista a mensagem: é o que o mundo precisa, um homem à antiga dado a pouca mariquice, o mesmo homem que disse que, se quisesse, “tomava Kiev em duas semanas”. Movimentando-se entre a presidência e a pasta de Primeiro-ministro, parece estar bem confortável no seu lugar central na esfera de poder russa – e mundial.
Anna Arutunyan, editora do The Moscow News, pinta-nos um quadro com profundidade de um fenómeno sócio-político, quer parcialmente imerso em vícios ancestrais, quer com uma modernidade contrastante. “A Mística de Putin” (Quetzal, 2014) trata diversos desses vícios, desde o culto da personalidade que espelha o estalinismo passando pelo sistema “neofeudal”, imerso em tráfico de influência e corrupção, palavras igualmente em voga no léxico português na era do juíz disto tudo. Trata-se de um conceito medieval, onde centros de poder se regem a gosto além do alcance do centro moscovita que, ao mesmo tempo, está em aparente alerta de tudo o que se mexe em território russo (e fora dele).
Com o dedo a chafurdar na ferida, é dado também destaque à oposição ao regime, em alguns casos bem mediática. As Pussy Riot elevaram-se em popularidade, sobretudo a nível internacional, graças à “profanação” de um espaço religioso, com uma performance que à primeira vista tinha tudo de simples provocação – em menor escala que anteriores, já que Nadezhda Tolokonnikova, por exemplo, era conhecida por intervenções artísticas capazes de deitar qualquer valor moral por terra -, mas que deu azo a uma perseguição Kafkiana. No plano simbólico, representam a rotura com o conservadorismo crónico e muitas vezes mordaz vivido na Rússia, que Anna Arutunyan considera fulcral para uma espécie de acordar das trevas (uma isenção de imparcialidade que o seu ofício sugere). Há sempre uma posição tomada – e a da autora é clara.
Acima de tudo, Arutunyan é uma brilhante escritora, borrando as margens que separam a reportagem alimentada a jargão do ensaio pluridisciplinar de ciências sociais, e até da estilização romanesca – por vezes lê-se “A Mística de Putin” assim, como não-ficção, mesmo que tal seja demasiado imprudente. Sendo jornalista num contexto em que a comunicação social é dada às mais absurdas inverdades e manipulações, Anna Arutunyan é, sobretudo, convincente.
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