Violência de género. Desencontros. Preconceitos. Desigualdades. São estes alguns temas que percorrem “A Inocência das Facas” (Tcharan, 2015), livro escrito e desenhado por vários autores cujas receitas revertem inteiramente para a Cruz Vermelha Portuguesa – Delegação da Trofa.
A dinâmica do livro é criada através do encontro das palavras de um escritor e da sua representação gráfica por um ilustrador: José Saramago e David Pintor fazem um apelo à paz, “…possível se nos mobilizarmos para ela“; Filipa Leal e João Vaz de Carvalho partem de uma recriação da velha história da Carochinha, aqui já casada mas mal vista- “tão enfadonha, tão repetitiva, aquela postura bélica” -, para chegar a um inesperado divórcio e à cedência da janela – e aoclássico pedido de casamento – ao João Ratão; Raquel Patriarca e Cristina Valadas trazem-nos uma infância passada entre gritos e insultos, onde apenas resta “…um canto de chão, entre uma parede e um armário, onde o escuro faz uma cova e o silêncio parece mais fundo“; Manuela Costa Ribeiro e Anabela Dias levam-nos até uma pedreira onde todas as crianças que lá brincam têm o mesmo sonho: “Crescer num mundo onde todas as crianças fossem iguais, sem haver umas mais crianças que outras.” Há porém uma pedra, de entre as outras pedras, que tem um sonho que não quer contar a ninguém como medo de que este nunca se realize; Marta Bernardes e Marta Madureira relembram os avisos parentais e a percepção das crianças de que “…o mundo está cheio de coisas maléficas e nós temos de andar nele em pezinhos de lã“. Ou, de outra forma, a ideia de bem e de mal a partir do uso que fazemos dos objectos e das coisas; Manuel Jorge Marmelo e Evelina Oliveira partilham as brigas dos pais da Sofia num cenário de violência doméstica do avesso, onde a criança de “olhos amarelos quase pretos de tão escuros” lhes perde a cor; Adélia Carvalho e Patrícia Figueiredo recuperam também a Carochinha para mostrar a rota de fuga ao destino há muito traçado para as mulheres; Valter Hugo Mãe e Teresa Lima mostram a importância da companhia para a felicidade; Inês Fonseca Santos e Alex Gozblau trazem-nos uma história que, não tendo ainda sido contada, já aconteceu a muita gente. Sobre estalos na cara e estalos de língua, da inveja, do bullying e da revolta; Emílio Remelhe (traduzindo um texto de Elliot Rain) e Gémeo Luís tecem uma espécie de máxima em tom de aviso sem retorno: “só depois de muito mal feito a violência vem tentar explicar-se“. Antes disso deram-se as ameaças e a brutalidade; Álvaro Magalhães e Maria Remédio contam-nos a vida secreta das portas, em que há um estranho mas bem conduzido namoro entre a porta da frente e a dos fundos ou uma porta com um parafuso a menos…na fechadura; Afonso Cruz apresenta-nos a um em tempos rapaz que quis ser tantas coisas que acabou sozinho a falar com os seus preconceitos.
Com ilustrações que vivem preto, do branco e do vermelho – e das derivações deste triângulo cromático -, “A Inocência das Facas” é um livro para ver e sobretudo pensar em temas que muitas vezes nos passam ao lado – ou aos quais fechamos os olhos -, mas que aponta caminho a um mundo que se deseja mais civilizado e habitável.
O livro venceu o Prémio VIDarte – A arte contra a violência doméstica, atribuído pela Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género, cuja cerimónia de entrega de prémios acontecerá no dia de amanhã.
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