O título desta obra de Helen Macdonald, “A de Açor” (Lua de Papel, 2015), podia sem perda de identidade ser “A de Amor”, “E de Entrega”, “R de Resgate” ou, até, “I de Integridade”. Todos eles são reflexos da forma avassaladora com que a autora passa por uma profunda crise pessoal e da sua capacidade de resistir e se renovar, tendo por base o amor e a entrega a uma ave de rapina.
Após o súbito falecimento do pai, Helen Macdonald, escritora, historiadora e académica britânica, intensifica o interesse e a dedicação à falcoaria, actividade que descobrira junto do mesmo e que, pelas suas características, lhe incutira uma forma muito própria de estar e encarar a vida.
Aos oito anos tentava dormir com os braços dobrados atrás das costas, como se fossem asas. Aos doze, quando os pais lhe permitiram acompanhar um grupo de falcoeiros, assistindo ao comportamento predador de um Açor, teve o primeiro contacto com a morte, apreendida, à altura, não como perda mas como condição de sobrevivência e de renovação. Anos mais tarde procuraria superar a perda do pai entregando-se ao treino de um açor, Mabel, recuperando nessa tarefa memórias e ensinamentos de infância, cumplicidades e alianças estabelecidas com o pai, tendo por base a paixão pela observação e a minúcia da recolha de informação sobre as aves de rapina.
A paciência, condição para se alcançar metas e realizar desejos, é aperfeiçoada através da viagem ao habitat das aves de rapina, absorvendo os seus comportamentos de sobrevivência e colhendo os seus registos de aliança dentro da espécie, com outros animais e com a natureza em geral.
Há aqui respeito, tanto por pequenos mundos como pela capacidade de se descentrar, identificar, compreender e gerir estados emocionais, resistindo à capacidade de impor ritmos e metas: “há dias em que um açor manifesta uma disposição peculiar, nervoso, irritável, hostil, fazendo com que os falcoeiros o respeitem e aguardem que se recomponha”.
A gestão da perda dá-se numa acção de transferência de desejos para a natureza, para as paisagens campestres onde a autora se retirou e circulou enquanto treinou o seu açor, Mabel, apaziguando emoções num “vasto espaço verde vazio que não pode devolver-nos o amor, mas que também não pode magoar-nos”. A natureza e os animais surgem como renovação e apaziguamento de emoções; o ensino de um açor como forma de se ensinar a si própria.
Ao longo das mais de trezentas páginas o leitor colhe um manancial de informação sobre a falcoaria, com direito a um pequeno glossário e múltiplas referências bibliográficas sobre a actividade, com interesse para leigos e para entendidos no assunto. Num registo biográfico, incomensuráveis são também as introspecções realizadas pela autora, passíveis de nos conduzirem a um exercício de reflexão pessoal: “Quando estamos destroçados, corremos. Mas nem sempre fugimos. Por vezes, sem o saber o que fazer, corremos ao encontro de algo”. Ou ainda: “O que acontece à mente depois de uma perda só faz sentido mais tarde (…) depois da perda de um pai, a mente não se limita a procurar novos pais no mundo, mas procura novos Eus com que os amar”.
“A de Açor” foi vencedor de vários prémios, entre os quais os dois mais importantes prémios literários de não ficção: o Samuel Johnson Prize e o Costa Book of The Year.
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