“O rapaz esperava a rapariga no bar da piscina, como tinham combinado. Olhava para o relógio e sentia-se parvo – viajara de tão longe, e nem conhecia a cara dela. Insistira em que ela lhe enviasse uma imagem, ao menos uma – afinal ele tinha-lhe oferecido o seu segredo mais íntimo, as fotografias da sua mais bela (embora falhada) tentativa de suicídio (…)”
Uma falta de rumo ou de orientação, a confusão ou o desvairo. Poderiam ser estas as definições de “Desnorte” (Dom Quixote, 2016), mas Inês Pedrosa atreveu-se a colocar mais significados no seu novo livro de contos. E, se há característica que permanece a cada obra que a autora lança, é exactamente a orientação para um caminho literário planeado e diversificado com diferentes tons, personagens e mensagens. Para suceder a uma história tão carregada de realismo como “Desamparo”, com personagens caídas ao chão num país amassado por uma das piores e mais terríveis crises económicas alguma vez sentida, a escritora dá agora a conhecer a verdadeira face do ser humano através de pequenas histórias, intensas graças à grande quantidade de emoções.
Há um caminho a percorrer desde o primeiro conto, A Voz, até ao último, As mais altas coisas. O leitor traça o seu caminho com uma jovem que deseja encontrar a sua própria voz, depois de tropeçar no seu grande ídolo num bar de um hotel («Esta noite tu cantaste para mim, e é por isso que aqui estou, sozinha neste quarto de hotel, a decidir o que vai ser o resto da minha vida»). Nas palavras desta personagem fica a sensação de ser necessária uma vida inteira para cada ser humano descobrir, entre centenas de reflexões e pensamentos, a sua identidade. A esta procura sucede-se a história de um velho homem a caminhar pelo passado, com o desejo de ter novamente quinze anos. Regressa repentinamente à juventude mas não deixa de ser um “velho apaixonado”, ao relembrar as marcas que todos os tipos de amor lhe deixaram. Duas caras da mesma moeda em apenas dois contos: quem procura a sua própria voz e quem revisita a sua, ciente de todos os caminhos tomados.
O amor é, provavelmente, o tema que dá forma à maioria dos contos deste “Desnorte”: há um pai que criou a sua única e amada filha através dos livros que lhe enviava, após lhe ser retirada para ir viver com a mãe («Passava três ou quatro horas na livraria-papelaria central, seleccionando cuidadosamente um livro. Comprava dois exemplares da mesma obra e mandava embrulhar um deles, nunca se esquecendo de exigir um laço colorido para o embrulho»); uma mulher, com uma vida plenamente vivida e sentida, que sente a obrigação de limpar o jazigo onde repousa o seu falecido marido e toda a restante família, que nunca a considerou verdadeiramente como um elemento para espanto da única filha que a ajuda na tarefa; um homem que não consegue deixar de admirar a sua grande amiga Suzana, numa amizade em que apenas ele corre para alimentar. Mas o amor mais triunfante, aquele que acaba por dar origem ao melhor conto nesta obra, é o mais transformador: o conto homónimo.
Ao invés de se despedirem da vida com a morte, um rapaz e uma rapariga acabam por encontrar um no outro a melhor forma de se despedirem de tudo o que os atormenta («Apetecia-lhe prescindir dos seus gostos pessoais para dar prazer a alguém, o que constituía uma experiência inédita na sua existência»).
Para completar o amor, mesmo o mais obsessivo e erótico como acontece em A Posse, há também uma especial atenção à literatura, especialmente nas histórias de A Página Tantas, em que cada personagem dá a conhecer os seus desamores num festival literário, um tanto ou quanto a relembrar as Correntes d’Escritas, na Póvoa de Varzim. Em plena viagem de avião, personagens tão conhecidas de grandes livros como Dom Quixote de la Mancha ou Madame Bovary tentam parar um terrorista de fazê-los desaparecer numa explosão.
Longe de ser uma estreante deste género literário, Inês Pedrosa vem provar mais uma vez que escrever contos não é uma tarefa fácil, desvendando quais os acessórios que dão mais força às personagens e quais os pormenores devem ser deixados para trás, colocando sempre os leitores na acção. É através da sua escrita tão directa e incisiva, como nos tem habituado em romances como “Fazes-me Falta” ou “Desamparo”, que acaba por chamar a atenção dos leitores, cada vez mais concentrados na rapidez das redes sociais e de toda a informação digital. As ilustrações de Gilson Lopes, uma para cada conto, são de louvar: contos tão intensos e profundos só conseguem ser resumidos através de uma imagem pelas mãos de um grande artista.
“Desnorte” vem provar que o conto é um género literário que merece ser valorizado por todos os leitores: os que dizem não ter tempo livre e os que não sabem o que fazer com todo o tempo que possuem. “Desnorte” é um rumo, uma paragem em cada conto, para um povo tão cheio de vida num país cada vez mais perdido e abafado.
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