“Eram outros tempos, outras pessoas e até outras posturas na vida que aos poucos fomos vendo desaparecer ou simplesmente deixamos de usar.”
Servindo-se das suas memórias e estórias, Germano Almeida delicia, num livro de afectos sobre Cabo Verde, o leitor desprevenido que embarca numa viagem tocante. “Regresso ao Paraíso” (Caminho) é um aconchego, pela facilidade com que qualquer um, mesmo sem pré-ligações ao arquipélago, consegue visualizar os cenários descritos e acompanhar o pensamento dos vários personagens, todos ligados numa teia de relações, dramas e afectos: o acasalamento, o luto, o misticismo e a religiosidade; relatos de cumplicidades na amizade, de solidariedade na adversidade, de resiliência na desilusão e solidão, especialmente quando registos de sobrevivência ditam silêncios que calam profundas mágoas; a gravidez inesperada de Dina; o silêncio comprometido da tia Adelaide que tinha a incumbência de a proteger e que, embora casada com um professor, nunca a ensinou a ler e escrever; a sua fuga para a América e o regresso à ilha, endinheirada, querendo construir uma inédita casa de banho dentro da habitação.
Partindo das suas origens na ilha da Boa Vista, Germano de Almeida consegue fazer-nos sentir o nostálgico cheiro da cachupa lentamente cozinhada no forno de três pedras, o sensual bater dos paus de pilão a esmagar o milho e o alegre latido do balaio de tender a separar os grãos do farelo. Outros tempos, outras pessoas e outras posturas na vida.
Identifica também, nostalgicamente, os efeitos destruidores da modernização que ignoraram valores culturais e se apropriaram avidamente da natureza. Conseguimos acompanhar vivências íntimas, de cariz familiar, ao percebermos como o irmão Florêncio, em jeito de vingança pelo incómodo do tambor de Niné, resolveu serrar a acácia que lhe servia de sombra enquanto aguardava o almoço tocando. Uma árvore plantada pelo tio Possidónio antes de emigrar para a América, correndo atrás de Leopoldina zarolha para aí morrer sem ter voltado à terra. Para todos era certo que tio Possidónio tinha vindo constituir morada eterna entre as folhas daquela árvore.
Pensar a cultura cabo-verdiana é o mote. O essencial é compreender a estrutura e a dinamicidade das atitudes, valores e tradições deste povo. O rápido alastramento da industrialização, entre outros factores, estará na base do desaparecimento de muitos aspectos das pequenas comunidades rurais e urbanas, dada a alteração das condições de vida, arrastando consigo a perda de identidade cultural, mas criando a necessidade de manter viva a memória colectiva das populações.
O livro fornece-nos múltiplas manifestações culturais, tradições orais, religiosidade, família, aspectos materiais, alimentação, entre outros, pelos quais se veicula uma especificidade cultural vivida e sentida no quotidiano das ilhas em Cabo Verde, mas também nos momentos do cabo-verdiano no exterior. A emigração como um dos elementos fundamentais que condicionaram o perfil da comunidade cabo-verdiana, uma emigração que foi, quase sempre, concebida como exílio mais ou menos temporário, embora muitos acabassem por permanecer para sempre no estrangeiro dado o tipo de vida que encontravam. Géneros representativos que têm como fonte sentimentos e a sua expressão, nomeadamente através da música, em torno muitas vezes de fracassos amorosos, vicissitudes da vida e de assuntos banais.
É daqueles livros que nos deixam nostálgicos, recordando os tempos de infância e as relações que nos estruturam: espaços perdidos, ligações retomadas, tempos de afectos e de identidade. Para o autor, cabo-verdiano, advogado, residente em São Vicente, “Regresso ao Paraíso” é mais uma publicação investida em retratar o ambiente social e familiar na ilha da Boa Vista onde nasceu. A sua já vasta produção revela fidelidade à recriação de experiências pessoais mas, também, à produção de retratos culturais cabo-verdianos mais abrangentes, com histórias realmente acontecidas de outras ilhas e estórias recolhidas em contexto rural, muitas vezes retratadas com humor e sátira. Ao todo, mais de quinze títulos publicados em pelo menos treze países.
Sem Comentários