Vamos imaginar alguém nascido aos catorze meses, numa terra chamada Crow Junction, com uma infância nem feliz nem infeliz: “como todos os putos, roubava marmelada das tigelas e apanhava porradões na cabeça. Deve aliás ter sido disso que saí para o chocho”. Na escola, “à semelhança dos outros alunos, levava uma sacola com cadernos, lápis, afiadeira e borracha. Mas não levava a sacola ao ombro: sabia lá que se punha assim! Levava-a pelo chão, e até lhe atei uma corda para a puxar melhor. A professora, quando soube, comentou: este Angel é bronco de primeira! Foi daí que começaram a chamar-me Bronco Angel”. Os colegas costumavam dizer “este gajo parece que nasceu cruzado de hipopótamo e harmónica de beiços”.
Fernando Assis Pacheco publicou a narrativa de “Bronco Angel, o cow-boy analfabeto” (Tinta da China, 2015) no semanário satírico O Bisnau, durante o ano de 1983, sob o pseudónimo de William Faulkingway. Muitos consideram-na o retrato mordaz de Portugal nos anos 80: o nascer num ambiente hostil, pouco desejado e amado, desvalorizado, mal tratado e mal orientado; as agruras de uma escola sem pedagogia, estereotipada e indisponível para a diferença; a rejeição e a dificuldade de integração em sucessivos contextos hostis até à criação de um amigo imaginário (ou real, quiçá), com quem partilhar o gosto pela marmelada caseira.
Seguem-se episódios inesperados de interacção com personagens improváveis (J.R. Ewing em Dallas), de propostas imprevisíveis (assessorar Ronnie Reagan em Washington) e de opções insólitas de Bronco Angel em permanecer em Crow Junction, tornando-se ajudante do xerife Jimmy Cicatriz:
“Sabes ler, escrever e contar?, perguntou o xerife quando apareci ao trabalho na primeira inolvidável manhã da nossa colaboração.
Sei apanhar gafanhotos à palmada, respondi. E sei jogar à macaca. E sei quem foi o primeiro rei de Portugal.
Quem foi?
Dom João V.
Óptimo. Não quero analfabetos”.
Foi assim que Bronco Angel enfrentou uma série de desafios, entre os quais o temível Búfalo Poia, até chegar a xerife de Crow Junction em efectividade de funções.
Segundo Carlos Vaz Marques, responsável pelo prefácio, “de uma forma ou de outra, quase tudo é riso em Fernando Assis Pacheco. Fazer troça da própria dor pode ser um poderoso analgésico. Uma pessoa sofre, uma pessoa comove-se, uma pessoa chora, mas no instante em que o sofrimento ameaça tornar-se autocomplacência é altura de sabotar a mariquice com uma boa gargalhada”.
Trata-se de um livro inédito de Fernando Assis Pacheco, poeta, cronista e jornalista, determinante no humor da segunda metade do século XX em Portugal. Vinte anos após a sua morte, a Tinta-da-China dá início à publicação de toda a sua obra. As ilustrações de João Fazenda ampliam na perfeição o cenário imaginado pelo escritor.
Ilustrações de João Fazenda
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