Num mundo cada vez mais globalizado, as cidades – sobretudo as maiores – vão tendo, à superfície, um visual que as torna quase gémeas, sobretudo naquilo que diz respeito ao rosto do consumo, reflectido em fachadas que albergam lojas de roupa, restaurantes de comida rápida ou outros antros que dispensam a identidade da terra onde são erguidos.
Há, ainda assim, “traços de personalidade” que se escondem um pouco em toda a parte, seja nas ruas e ruelas, nas traseiras dos edifícios, nos jardins escondidos, no interior das habitações ou em certas imagens das igrejas e capelas. Traços que, para além do lado visual, escondem histórias que devolvem às cidades uma identidade perdida e, para todos, praticamente desconhecida.
Germano Silva, reconhecido como um dos maiores conhecedores do Porto e da(s) sua(s) história(s), decidiu partir em busca desse “Porto desconhecido & insólito” (Porto Editora, 2015), dos traços que ficam “escondidos algures e transformam-se depois em segredos escancarados nas fachadas antigas, nos cruzeiros e fontes que, em outros tempos, pontuavam o espaço público, em torres e cemitérios, na toponímia e na forma de falar, de ser e de estar” – do prefácio de Jorge Ricardo Pinto. De uma cidade em constante recriação mas que, se olharmos atentamente, “mantém traços identitários nas suas esquinas e travessas”.
Trata-se de um livro que revela uma vez mais um trabalho de artífice, feito com uma paixão desmesurada por uma cidade que mora dentro do autor. E que, para o leitor, reserva muitas e incríveis histórias, que despertarão o interesse dos que pouco conhecem o Porto e que, para os seus habitantes e visitantes regulares, irão proporcionar a redescoberta de uma parte da cidade que julgavam extinta ou inexistente.
Em 1872, por exemplo, o Imperador do Brasil D. Pedro II (filho do “nosso” rei D. Pedro IV) chega ao Porto, instala-se à grande no hotel mais luxuoso da cidade e, quando lhe é apresentada a conta, regressa ao Brasil sem pagar um centavo, iniciando um incidente diplomático que se prolongou durante muito tempo; já o Recolhimento do Codeçal foi, em tempos, uma instituição onde eram colocadas, em clausura, “senhoras ou meninas que os seus superiores (leia-se pais), por conveniências públicas ou particulares (seja lá isso o que for!), entendessem dever retirar do século – isto é, do mundo” – apontamento do historiador Henrique Duarte de Sousa Reia; há também a história de S. Benedito, padroeiro dos escravos, um negro que enverga o hábito dos franciscanos mas que, em vez do habitual ar áspero, reflecte o dourado de um tecido nobre e macio; ou o lugar conhecido como Mãe D`Água onde, a 7 de Fevereiro de 1866, Antero de Quental e Ramalho Ortigão se bateram num duelo motivado por questões literárias; a Cruz da Cassoa, visível na renovada Igreja dos Clérigos, que no século XVII assinalava a entrada num terreno onde eram enterrados os corpos das pessoas que morriam na forca e dos presos que faleciam nas celas da cadeia; ou ainda a insólita inauguração da Ponte D. Maria Pia, feita a 4 de Novembro de 1877 por Dona Adelaide Lopes, esposa do chefe da Companhia Real dos Caminhos de Ferro Portugueses, que percorreu a pé, de Gaia ao Porto, uma ponta inacabada, como se possuída pelo espírito de um funâmbulo. Mais um livro maravilhoso de Germano da Silva que nos faz olhar, com ainda mais assombro, para a estonteante cidade conhecida como a Invicta.
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