Este é daqueles textos que começam com uma definição de dicionário. “Subversão, s.f. – 1) Acto ou efeito de subverter. 2) Insubordinação; revolta; ruína; perversão; destruição.” A linguagem é, de facto, uma coisa bela. Mais bela é quando nos remete para um conceito vasto em apenas uma palavra. Mas antes façamos a devida apresentação, de modo a contextualizar: temos entre mãos uma grande obra de referência sobre a ovelha negra dos movimentos artísticos da primeira metade do século XX: “Dada, História de uma subversão” (Antígona, 2015).
O devido mérito é atribuído aos autores Henri Béhar e Michel Carassou. A carreira de Béhar passa pela história da literatura francesa, e a de ambos pela análise do supradito Dada, bem como do Surrealismo. No plano lato, são um par académico dedicado ao estudo das qualidades visionárias da arte, vulgo avant-garde. A obra em questão, uma ferramenta de estudo completa, revestida por uma edição de modesto luxo (no que concerne ao seu aspecto gráfico sublime), diz-nos tudo no título. Dada não obedece a quem quer que seja; revolta-se contra o status quo do seu meio cultural; desvia-se de qualquer comportamento dito normal; apresenta-se como uma desconstrução destrutiva dos cânones. Dada promete tirar pleno partido da sua irreverência, compromete-se a reinventar o nada.
Como nome, Dada foi um acaso de dicionário, apropriado em co-autoria por Richard Huelsenbeck e Hugo Ball. É, contudo, um mero jogo de semântica. A certo ponto, o nome que significa coisa nenhuma é apropriado por todas as figuras de proa do movimento, espalhando-se pelo globo. Estamos no plano do mito, o rastilho cultural permitido pela pré-histórica fabulação da linguagem. Na memória colectiva, permitida pela imprescindível tentativa de imortalização pela via académica (enquanto houver História), Dada ficará associado, entre inúmeros feitos, ao delírio de Cabaret Voltaire, aos ready-mades de Marcel Duchamp, à profanação linguística de André Breton ou àquele que é o nome mais citado da obra: Tristan Tzara, o mais tarde filiado no partido comunista e autor do Manifesto Dada.
Um caso sistémico que se alastrou pelas artes pictóricas, sendo até, quiçá mais importante para a literatura e a linguística, a par do contributo que deixou para uma formulação de estética tipográfica sem precedentes, Dada nunca foi restritivo no modo como se apresentava. Nas artes cénicas, chega a ser caso de vida ou morte quando Breton e Soupault ponderam a possibilidade de falecer em palco, caso um jogo de roleta russa tenha o resultado menos desejado. A esta pluralidade acresce o pensamento filosófico, mais caótico que a vertente artística do movimento. Trata-se de uma estirpe niilista que chega a considerar a aniquilação completa do valor e sentido das coisas uma impossibilidade, aproximando-se, por oposição, ao zen budista (alguns interlocutores dadaístas admiravam as doutrinas filosófico-espirituais do Oriente), cuja serenidade característica é obtida durante o processo criativo. Mas se optarmos por ser secos na síntese, Dada limita-se a um reflexo cultural dos tempos conturbados da Primeira Grande Guerra, que se apresenta como um corte com os costumes moralistas da burguesia endinheirada e sobejamente conservadora.
“Dada, ao que parece, tem um futuro risonho”. Considerar apenas o que os autores de “Dada, História de uma subversão” acham sobre a boa saúde do espírito dadaísta na criação artística de hoje, levar-nos-ia à insípida conclusão de que se trata de uma síntese actual – como é sabido, aquilo que se diz à boca cheia para justificar a abordagem a algo que parece encaixar na perfeição no nosso quotidiano. A julgar pela quantidade de produção artística quase centenária, milenar, em que o mundo contemporâneo se revê – e por vezes até lhe custa admitir que certas coisas mudam mesmo -, talvez não se trate de um tema actual – como tudo calha a ter nem que seja um resquício de actualidade -, mas sim, no seu âmago, de uma constante humana que tanto cheira a mofo como a água de rosas.
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