A desalinhada e açoreana Companhia das Ilhas decidiu publicar este ano uma mão cheia de poemas de José Ricardo Nunes numa espécie de booklet. Nada a dizer: a poesia pode ser de bolso. A poesia pode caber nas calças de ganga. O problema não está no formato, mas na execução gráfica, que é pobrezinha e acabada às três pancadas; tanto como no critério de selecção do conteúdo lírico, que, depois de uma primeira leitura, parece insondável. Sabemos que estes textos foram escritos entre 2007 e 2013, mas o autor tem poesia editada durante esses anos e os poucos poemas que aqui se reunem não parecem dar ao leitor uma narrativa que justifique a breve reunião. Podemos encontrar o mesmo registo despretensioso e quase diletante, dir-se-ia errático, nos poemas que José Ricardo Nunes já publicou na revista Colóquio/Letras, por exemplo. E, assim, que espírito preside a esta antologia pequenina?
Podemos e devemos especular. O poeta, claro, faz o favor de nos dar algumas pistas: “Três Oito e Setenta e Cinco” (Companhia das Ilhas, 2015), a terminação da sorte grande que se recusa logo à partida, é uma polaroide sensacionista. O Álvaro de Campos do Século XXI podia muito bem lamentar o indivíduo que, no Chiado de um dia chuvoso, teimosamente, não adere ao abrigo da multidão. Ou queixar-se do animal que disserta sobre a alma humana à porta do planetário (e até abre o saco para o poeta espreitar!). Da alma, José Ricardo Nunes confessa ignorância irrecuperável, mas é um verdadeiro perito do instante. E da sensação que faz na espinha do pensamento. Tanto mais urgente é o espectáculo do momento presente como inútil e doloroso o vasculhar do passado:
A memória, que bate com o ferro nas grades
quando vem ao nosso encontro
abrindo ecos e terrores em passados exemplares, prontos
a usar, subitamente tiros
que damos em nós próprios.
Fazendo recurso a estrofes lindamente descuidadas, o autor prefere evocar o corpo momentâneo e a intratável comichão que provoca nas raízes da sensibilidade:
Faço aqui o meu corpo
e escrevo, teimo em escrever –
a vida, eu sei,
tão irreparável.
Os versos fluem pelos interstícios das impressões cronometráveis e intermitentes, muitas vezes sem que o leitor perceba onde começam e como acabam, porque na verdade “escrever não tem préstimo”. Devemos considerar aliás, a grande escassez de soluções úteis ou transcendentais para o cosmos. Se até “os planetas não têm luz própria”, que claridade podemos esperar da vida? Ao espectador-trovante, ser-lhe-á concedido não mais que o duvidoso privilégio do espanto e a escuridão da realidade atómica. Como um verdadeiro Demócrito das Caldas da Raínha, José Ricardo Nunes lança-se resolutamente na senda da parte indivisivel da matéria (que é o mesmo que dizer do tempo). No processo, homens e bichos tornam-se objectos de um voyerismo laboratorial, sujeitos ao método experimental da ciência das sensações.
Fico a observá-los da varanda:
vértices moventes, desenham
com muro de permeio volúveis
geometrias pelo tempo de um cigarro.
Esta tentativa de cristalização do tecido espacio-temporal é um feitiço difícil e até o silêncio, calcificado, perde qualidades. Mas será uma estratégia desesperada para conviver com o caos. Até porque não há nada mais perigoso que a disfunção assertiva:
Arestas, solavancos, desenganos.
Pior ainda quando se dá
em boa ordem. Tantos elementos
e o sopro que os dispõe nas formas.
E é assim que esta quântica edição vai ganhando a sua consistência. Temos que investigar. Temos que ser científicos. Temos que saber porque raio é que “ninguém desiste do seu inferno”. Mais a mais, esta irredutibilidade do destino é cruelmente paradoxal porque se o poeta é o espectador-trovante do caos atómico,
“o inferno não é um espectáculo. E não
avisa quando sobe da terra
para nos tomar.”
Curioso: a excepção duradoura à lei termo-dinâmica da fugacidade de tudo vem pela voz de Dante. E aqui chegados, dir-se-ia que a perdição está instalada. Dir-se-ia erradamente porque quando as sintéticas páginas se reduzem à última, José Ricardo Nunes encontra, quase sem dar por isso e com a característica atitude displicente da sua requintada lírica, a redenção-solução para a intrincada comédia trágica do aqui e do agora:
Neste momento tudo se aquieta,
nem é preciso um verso vir
munir-me de um sentido transitório
com a sua voz sumida, entre a derradeira nicotina e
o efeito do ansiolítico começo já
verdadeiramente a sentir-me realizado,
penso mesmo que uma pontinha de felicidade,
palavra que tanto costumava ofender-me,
compensa o sacrifício que é
chegar até aqui.
O presente é estupefaciente e nessa estupefacção é que está o primeiro prémio do euromilhões e é por este caminho que devemos prosseguir para encontrar afinal razão pura e prática neste mínimo e frágil objecto editorial: a lotaria hipnótica do instante será, por definição, efémera. Volátil e descartável como um livro de bolso improvisado.
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