A Companhia das Letras traz-nos“O Drible”, terceiro romance publicado em Portugal do escritor e jornalista brasileiro Sérgio Rodrigues (n. 1962) e vencedor do Prémio Portugal Telecom de Literatura em Língua Portuguesa em 2014 (por cá Gonçalo M. Tavares e Valter Hugo Mãe estão entre os premiados em anos recentes). Para os mais atentos à actualidade, a quem a mera referência na mesma frase ao país irmão e ao gigante português das telecomunicações possa soar a cambalacho, asseguramos que não: trata-se da bem-sucedida tentativa de Sérgio Rodrigues de fazer rolar sobre os relvados a boa ficção.
É sabido que o mundo da cultura e o mundo do futebol costumam estar de costas voltadas. Quem não se lembra da futebolada entre filósofos ou da entrevista a um futebolista, congeminadas pelo génio trocista dos Monty Python? Do lado de lá do Atlântico não é tanto assim. O Brasil respira futebol, e nem os intelectuais estão fora-de-jogo. Os feitos do escrete de Pelé e companhia mostraram ao mundo – e também aos brasileiros – a dívida do Brasil para com a miscigenação, ao mesmo tempo que inspiraram uma geração de cronistas desportivos a elevar ao estatuto de literatura os seus textos, com Nélson Rodrigues e Luís Fernando Veríssimo entre os seus melhores executantes. Sérgio Rodrigues é herdeiro desta linhagem de escritores que tem demasiado afecto ao desporto-rei para ver nele apenas um fenómeno de massas alienante e ridicularizável, valorizando antes o seu lado mais humano, o ângulo inesperado, o apontamento sociológico.
Em “O Drible”o futebol é o pano de fundo onde se desenrola uma densa trama familiar contada a duas vozes – a de Murilo Filho (o pai) e a de Neto (o filho) – e da decifração de um enigma familiar que marca, de forma irreparável, a existência de ambos: o suicídio de Elvira, mulher de Murilo e mãe de Neto, quando este tinha apenas 5 anos de idade.
Murilo é um conceituado jornalista desportivo, agora enfermo e retirado numa casa de campo. O seu filho, Neto, profundamente marcado pela morte da mãe e pela distância afectiva do pai, é um homem desencantado que, depois de uma meteórica carreira na música alternativa carioca, ocupa os seus dias como revisor de livros de auto-ajuda e coleccionador de relações fugazes e de memorabilia da cultura pop dos anos setenta. Consciente da aproximação do seu fim – e numa aparente busca de redenção – Murilo procura a reconciliação, convocando-o para tardes de pescaria e longas conversas. Do antigo cronista jorram memórias de jogos e de ídolos do passado, numa sequência aparentemente desconexa, que Neto atribui à senilidade do pai enquanto aguarda em vão as explicações de que julga ser credor. Mas a única coisa que recebe do pai é um manuscrito com a história fantástica de Peralvo, conterrâneo e contemporâneo de Murilo, um jogador de origem mestiça com a capacidade sobrenatural de antever os movimentos dos adversários, cuja lenda é narrada pelo pai com delírios de realismo mágico. E é na crónica da ascensão e queda deste misterioso personagem, cuja narração se entrecruza com a história contemporânea do Brasil (em especial o período que antecedeu a instauração da ditadura militar) – e com a própria biografia de Murilo -, que reside inesperadamente a chave da relação entre pai e filho.
Começando com a célebre finta de corpo de Pelé sobre o guardião uruguaio durante a meia-final do Campeonato do Mundo de 1970, e terminando com um nó cego de Sérgio Rodrigues sobre o próprio leitor, “O Drible” é o relato de um jogo tenso entre pai e filho, com alternância no resultado e um desfecho imprevisível. Muito recomendável.
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