“Se isto é uma mulher” (Editorial Presença, 2015) é a biografia do campo de concentração para mulheres de nome Ravensbrück, que Sarah Helm brilhantemente recupera e traz ao conhecimento de todos aqueles que procuram saber mais sobre a II Guerra Mundial. O título do livro é uma referência à obra “Se isto é um homem”, de Primo Levi, um prisioneiro de Auschwitz que sobreviveu e contou a sua história.
Construído na margem de um lago e rodeado por uma floresta, este campo entrou em funcionamento em maio de 1939, tomando o nome da vila adjacente à cidade de Fürsternberg, a 80 quilómetros de Berlim. Acabaria por ser libertado pelos russos seis anos mais tarde, sendo um dos últimos campos de concentração a que os aliados chegaram.
Ao contrário do que se possa pensar, não foi construído para judias – estas prisioneiras eram uma pequena percentagem. As principais detidas eram mulheres que se opunham a Hitler, comunistas, testemunhas de Jeová, prostitutas, criminosas, sem-abrigo, ciganas e, mais tarde, mulheres pertencentes à resistência, capturadas em países ocupados pelos nazis. Entre as prisioneiras encontrava-se a nata das mulheres da Europa.
Estava-se numa época em que as mulheres estavam longe de ter direitos. Hitler defendia que as alemãs deviam ficar em casa, criar tantos filhos arianos quantos pudessem e obedecer aos maridos. A maior parte dos empregos era-lhes barrada e o acesso à universidade era limitado.
Em meados dos anos 30, acreditava-se que a maior ameaça à paz era o comunismo e não a Alemanha nazi. Os campos de concentração eram por isso tidos como uma questão interna da Alemanha que não tinha importância internacional.
Durante a existência deste campo, cerca de 130.000 mulheres passaram pelos seus portões e estima-se que o número de mortes tenha oscilado entre 30.000 e 90.000. Hoje em dia, permanece quase desconhecido, porque houve uma destruição maciça de dossiês, que foram queimados e as cinzas deitadas ao lago. Ravensbrück é frequentemente considerado um campo de trabalho escravo. Mas uma sobrevivente francesa, Germaine Tillion, caracterizou-o como realmente era: um local de «extermínio lento».
A Siemens & Halske foi a mais importante fábrica de armamento construída nas imediações do campo. Empregou mais de 2.300 mulheres. As trabalhadoras iam sendo substituídas por outras, mais fortes e mais jovens, uma vez que as prisioneiras trabalhavam 12 horas, comiam apenas uma sopa aguada e ficavam demasiado fracas e exaustas. O papel desta fábrica permaneceu ocultado até aos anos 60, altura em que alguns investigadores encarregados de obter indemnizações para as vítimas judias descobriram os factos. A empresa acabou por, a contra gosto, pagar pequenas quantias para um fundo – para o qual considerava não ter qualquer obrigação legal -, mas defendeu sempre que fora forçada a colaborar com Hitler, embora com relutância e que, por isso, não aceitava qualquer responsabilidade. Apesar desta alegação, a dúvida ainda hoje persiste, uma vez que é impossível acreditar que o pessoal da Siemens não soubesse da existência dos “fornos a gás” com as suas chaminés a 300 metros onde, no final da guerra, foram exterminadas muitas das trabalhadoras.
O genocídio nazi em Ravensbrück não está muito bem documentado, uma vez que estas mortes começaram a ser criticadas dentro e fora da Alemanha e Hitler teve que manter secreto e tentar disfarçar o seu “programa de eutanásia”. Sabe-se que «tratamento especial» era o eufemismo utilizado pela SS e pela polícia para encobrir os extermínios por gás. Ravensbrück não tinha sido, inicialmente, designado como centro de extermínio de judeus e as judias que lá chegassem seriam transferidas para Auschwitz.
No meio de tanta frieza aquece, de certa forma, o coração saber nem todas as pessoas que trabalhavam no campo de concentração eram desumanas ou sádicas. Mas, por outro lado, sempre houve entre as prisioneiras aquelas que passavam por cima das outras, que denunciavam, que eram simplesmente más apenas porque sim, que castigavam as companheiras para, em troca, tentarem obter um pouco de comida ou condições melhores no próprio campo.
Em 1944, devido à sobrelotação, a ordem no campo começava a desmoronar-se. As novas guardas eram fáceis de enganar, as prisioneiras começaram a correr mais riscos e surgiram fugas com sucesso. Antes, era praticamente impossível fugir. Quem conseguia era apanhado e punido com a morte. Também se registaram inúmeros casos de suicídio: as mulheres corriam para a vedação eletrificada ou enforcavam-se.
No mesmo ano, o Comité Internacional da Cruz Vermelha começou a receber informações sobre os crimes de guerra nazis. Relativamente a Ravensbrück soube, através de prisioneiras que escaparam, que as crianças estavam a ser esterilizadas, que cirurgiões criminosos faziam operações aos músculos e ossos das mulheres – que ficaram conhecidas como as “coelhas” – no sentido de fazerem experiências médicas atrozes e que, à menor coisa ou dependendo do estado de espírito, as prisioneiras eram mortas a tiro.
Nos últimos meses da guerra, chegavam as “grávidas de Varsóvia” – mulheres, entre elas freiras e crianças, que engravidaram devido às violações a que foram sujeitas por parte dos soldados. Em consequência foi autorizada, pela primeira vez na história do campo, a criação de uma sala de partos. No início, os bebés eram simplesmente retirados às mães e enviados para orfanatos nazis ou mortos imediatamente. A sala de partos agora criada durou pouco, uma vez que as guardas deixaram de dar aveia e leite às mães e estas deixaram de conseguir amamentar os seus filhos que começaram a morrer à fome. Dos cerca de 600 bebés que terão nascido em Ravensbrück entre 1944 e 1945, calcula-se que quase nenhum tenha sobrevivido. Depois da guerra, muitas foram as sobreviventes que nunca mais conseguiram falar sobre o assunto ou falaram muito pouco.
Nos anos pós-guerra, os historiadores não deram importância às histórias dos campos de concentração. O campo não tinha documentos oficiais, uma vez que foram queimados antes de os nazis abandonarem o campo. A história oral também não era digna de confiança para que os historiadores se interessassem. Estes são os principais motivos pelos quais só agora, tantos anos depois, nos chega esta obra.
Ravensbrück recebe hoje em dia 150.000 visitantes por ano, muito menos do que outros campos. Tem havido muitas desculpas para esta marginalização. Segundo a autora Sarah Helm, “é precisamente porque se tratava de um campo de concentração só para mulheres que Ravensbrück deveria ter sacudido a consciência do mundo. Outros campos mostraram o que a humanidade era capaz de fazer aos homens. Os campos de morte judeus mostraram o que a humanidade era capaz de fazer a toda uma raça. Ravensbrück mostrou o que humanidade era capaz de fazer às mulheres. A natureza e a escala das atrocidades infligidas ali às mulheres nunca antes tinham sido vistas. Ravensbrück não deveria ter de lutar «nas margens» por uma voz: foi – e é – uma história por direito próprio. […] Ao tratar o crime que aconteceu aí como marginal, a História comete um crime contra as mulheres de Ravensbrück e contra o sexo feminino.”
“Se isto é uma mulher” é um livro duríssimo que deveria ser de leitura obrigatória. Escrito de forma apelativa e clara, foi objecto de uma meticulosa e demorada pesquisa e vem preencher, de forma crua e avassaladora, a lacuna de informação que existia em relação a este e a outros campos de concentração. Meros curiosos ou especialistas na temática da II Guerra Mundial, todos ficarão mesmerizados com as informações aqui contidas.
Quanto às mulheres que tenham coragem de ler este livro – em certas passagens é mesmo um acto de coragem -, no final fica a tristeza, mas também a gratidão por terem nascido depois destes acontecimentos aterradores, trágicos e desumanos.
1 Commentário
Cara Sofia Afonso: obrigada pelo resumo que aqui nos deixas-te da obra de Sarah Helm. Fiquei surpreendida ao saber que, e em pleno século XXI, a maldade de Hitler ainda me assusta, que a 2 guerra mundial ainda me desperta o medo, tal e qual como a criança que eu era quando li o Diário de Anne Frank! Não sei o que isso significa perante meu “eu”, mas relativamente à obra será concerteza uma obra reveladora de segredos terrificos de um regime que se importava com muita coisa menos com o que realmente interessa – as pessoas!