É já o quarto título da colecção Nona Literatura, dedicada a explorar visões da BD sobre clássicos da literatura mundial. Após a publicação de “Drácula” (ler crítica), a editora A Seita continua a mostrar-nos o trabalho de Georges Bess na adaptação de grandes clássicos ao formato de novela gráfica, desta vez com o livro que terá inaugurado o género da ficção científica: “Frankenstein” (A Seita, 2023), romance assinado por Mary Shelley no ano de 1818.
Através dos excertos do diário do Capitão Walton, que pretende ser “o primeiro a descobrir uma pasagem através dos gelos do pólo”, encontramos Victor Frankenstein, um homem de ar maníaco com uma missão de vida que parece condenada ao fracasso: “Eu estou a perseguir um ser que foge de mim!”. Frankenstein que, desde muito cedo, se viu perseguido por uma paixão profunda – “explorar os segredos físicos e metafísiccos do mundo” -, pretendendo tornar os homens invulneráveis banindo a doença do organismo humano.
Depois de várias obsessões, Victor Frankenstein vira-se para as experiências eléctricas. “Procurava corpos em jazigos ou em valas comuns. O Sven dava-me uma ajuda preciosa nessas tarefas ingratas”. Tudo para testar e dinamitar os limites da pequenez humana, tentando criar um homem perfeito e impermeável à finitude e à ditadura do tempo. Um desejo que acaba cumprido, logo seguido da vertigem da claridade momentânea de um alcóolico: “Quando o vi, tomei pela primeira vez consciência do que tinha feito: recriar um ser vivo a partir de cadáveres não era mais que pura loucura!”. Um ser para o qual olha agora com repugnância e aversão, desejando que “desaparecesse, que se dissolvesse, como um sonho mau!”.
A partir daqui conta-se a história do monstro de Frankenstein que, anos depois, regressa para contar a sua história ao seu criador. Uma história feita de abandono, da aprendizagem pela observação e marcada pela falta de empatia, de alguém que questiona, a partir do âmago da sua fealdade, o absurdo da condição humana, num olhar que é todo ele político e social.
Tal como em “Drácula”, Georges Bess usa uma composição variada ao nível das vinhetas, algumas vezes bastante despidas ou com ar de esboços, outras com composições detalhadas que parecem storyboards feitos por um desenhador obsessivo, sempre num preto e branco e num traço que captam tanto a natureza inóspita, onde decorre grande parte da acção, como uma narrativa que desde muito cedo se torna numa história de ódio, vingança, desespero e arrependimento. Uma boa adaptação gráfica de um clássico eterno.
Nascido em França em 1947, Georges Bess iniciou a sua carreira na banda desenhada na Suécia, desenhando histórias do Fantasma, de Lee Falk, para os países nórdicos, mas foi o encontro com Alejandro Jodorowsky, no seu regresso a Paris, em 1987, que iria mudar a sua carreira. Com Jodorowsky, Bess vai realizar as séries O Lama Branco, Anibal 5 e Juan Solo, títulos que, a par com as séries que escreveu e desenhou, o ajudaram a afirmar-se como um nome incontornável da BD europeia, estatuto patente nesta adaptação a preto e branco de um livro que, publicado em 1818, não deixa de servir, se o quisermos, de alerta para o que parece ser a implementação triunfal da Inteligência Artificial, antevendo a criação de seres mais inteligentes do que nós – por que razão ninguém ligou importância a Kubrick, Clarke e a esse visionário “2001 – Odisseia no Espaço”?
Sem Comentários